O Instituto de Arquitetos do Brasil -
Departamento do Ceará, reafirmando seu papel histórico em defesa da qualidade
ambiental e urbanística das cidades do estado, e, de forma especial, de
Fortaleza, compreende ser necessário intensificar o debate acerca dos
graves problemas que afligem a população de uma das maiores metrópoles do
Brasil. Assim, na data em que é comemorada a fundação da capital
cearense, há quase três séculos, o IAB-CE dá continuidade ao debate sobre
a questão urbana, missão que abraçou desde sua inauguração, precisamente numa
quinta-feira, 18 de abril de 1957, há sessenta anos."A quinta maior cidade do
país (...),vem, mais e mais, se constituindo em um funesto exemplo de negação
da cidadania pela desconsideração ao atendimento dos direitos mais elementares
do homem e da sua dignidade". As palavras são do arquiteto José Alberto de
Almeida, sócio e ex- presidente do IAB-CE, além de ter integrado o Conselho
Superior do Brasil. Beto atendeu ao convite da diretoria do nosso instituto
para avivar o debate, que almejamos ampliar e aprofundar, permanentemente.
Você pode conferir também ,o texto integral no site do IAB-CE aqui.
Fortaleza,
por uma cidade de todos
Beto Almeida
Inverter as prioridades é assumir
a ética da equidade, dando mais a quem tem menos, menos a quem tem mais, o
mínimo a quem tem muito e nada para quem tem tudo. (Isso não é um provérbio
chinês)
As cidades brasileiras, em
especial as grandes metrópoles, são o retrato perfeito de uma sociedade que se
construiu e se reproduz sobre a exploração da maioria da população. Ao longo do
tempo as cidades foram se constituindo, não em um espaço de convivência, mas,
no locus da segregação, da exclusão e onde a marginalidade ganha espaços, a
violência confronta o Estado, e Fortaleza, a nossa cidade, não escapa a essa
constatação.
Mais uma vez, como sempre
acontece quando as chuvas caem com mais intensidade, expõem-se as suas
entranhas a demonstrar, de forma clara, a face cruel da desigualdade social e
aquilo que, elegantemente, o “Plano 2040” registra como “construída sem um planejamento constante
de seu crescimento, sem antecipações com respeito à hierarquização de sua malha
viária, sem considerações sobre os usos do solo e suas movimentações
decorrentes” por parte de sucessivas gestões municipais agravando o
“apartheid” social nela estabelecido, diagnosticando que “a cidade e sua
forma apresentam urgente necessidade de priorizar os aspectos de conectividade
e mobilidade urbana para a promoção de acessos”
A quinta maior
cidade do país entre as dez capitais brasileiras mais populosas, tendo
quadruplicado a sua população nas últimas décadas,vem, mais e mais, se
constituindo em um funesto exemplo de negação da cidadania pela desconsideração
ao atendimento dos direitos mais elementares do homem e da sua dignidade.
Ao longo do tempo a
organização sócio espacial da cidade de Fortaleza traduziu-se em um modelo de
crescimento que concentra a população de mais alta renda, serviços e
equipamentos sociais de maior importância em determinados bairros e espalha o
restante da população sem considerar, minimamente, questões como o meio
ambiente, existência de equipamentos e intra-estrutura de serviços.
Registramos na
cidade, áreas que detém menos de 15% da população e mais de 40% da renda e
áreas que, apesar de contarem com mais de 21% da população, detém pouco mais de
10% da renda. Enquanto isso, recursos são destinados a viadutos e obras viárias,
ainda que se registrem alguns avanços na melhoria da circulação do transporte
público, ao passo que canais de drenagem ainda permanecem obstruídos com suas
águas poluídas invadindo residências e atingindo frontalmente as populações
mais pobres.
Resta-nos constatar,
pela mais absoluta obviedade, que vivemos em uma Fortaleza dividida. De um lado
temos uma cidade rica, equipada e relativamente pouco atingida pelos fenômenos
climáticos cíclicos, e de outro uma cidade pobre, desequipada onde mora a maioria
da população, conformando uma urbanização desigual a exibir as chagas da
pobreza e da exclusão.
Apesar da existência
de instrumentos já reconhecidos (O
Estatuto da Cidade - Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, aprovado após 13 anos
de tramitação, está prestes a completar 16 anos de sua aprovação), as
dificuldades de implementação dos mesmos interpostas pelo poder econômico e
suas relações com o poder político,
resulta na manutenção/ampliação de vazios urbanos a agregar valor aos
seus detentores, enquanto a grande massa de excluídos permanece “empilhada” em
áreas de risco a mercê das inundações e dos desmoronamentos, ou fazem das ruas,
praças e calçadas os locais de sua sobrevivência.
Que cidade queremos
construir? Que ambiente urbano queremos legar aos nossos descendentes? Que
civilização? Uma cidade constituída de algumas “ilhas de prosperidade” dotadas
de bons serviços, cercadas por “oceanos” de indigentes que habitam o lixo por
ser esta a única opção que lhes foi permitida? Ou o nosso destino será a convivência
com condomínios fechados e centros de compra nos quais a tranquilidade está
garantida por esquemas de segurança privada.
Enquanto parte da
sociedade se fecha em determinados territórios, ao grupo majoritário só resta o
espaço público, para muitos símbolo de insegurança e violência, para
outros local de trabalho ou mesmo de
moradia, aí como refúgio de sobrevivência. Perde-se gradativamente o uso
multifuncional dos espaços urbanos restando como uso de todos o espaço da
circulação onde se corre e se pede perdão pela pressa (Sinal fechedo, Paulinho
da Viola). Insistir nesse caminho e nesse modelo é contribuir para o aumento da
marginalidade social no rumo da
violência urbana, um caminho sem volta.
Como sujeitos
políticos e sociais temos a obrigação de dizer não a este modelo e construir um
outro modelo de cidade que seja capaz de suprimir as causas deste que, ao não
considerar a dignidade da maioria da população, nega-lhe a cidadania como valor
fundamental da democracia.
O Plano Fortaleza
2040 apresenta-se arrimado em premissas válidas, diagnósticos corretos e
propostas inovadoras, mas o que nos preocupa é que a nossa história registra
diversos momentos em que planos foram produzidos, inclusive coletivamente, com
muitas intenções e… pouquíssimos gestos. Enfim, o que a nossa história
demonstra é exatamente aquilo que o Plano cuidou de registrar:
Garantir
que o Plano Fortaleza 2040 fosse levado em consideração e executado pelas
próximas seis gestões municipais foi uma das maiores preocupações manifestadas
pelos milhares de participantes presentes no processo de formulação. O que é
muito natural dado que dezenas de planos foram elaboradas para Fortaleza e
muito pouco de uns poucos foi executado. Não há cultura de planejamento nem
muito menos de continuidade entre uma gestão e outra, em geral mais preocupadas
em desenvolver seu marketing político do que desenvolver a própria cidade.
A decisão de dar a
devida importância no Plano à questão da Governança revela uma preocupação fundamental com a sua continuidade, uma vez
que deixa claro que o eixo estratégico “Governança Municipal” é o que assegura
a execução dos outros eixos estratégicos e os seus resultados na transformação
da Cidade. O texto de Introdução a este Eixo registra um conjunto de
preocupações por nós já referidas e cuja superação é fundamental:
Fortaleza
vem apresentando contexto marcado por profunda vulnerabilidade social, com mais
de 44% da população residindo em pouco mais de 12% do território na forma de
assentamentos precários, com ampla desestruturação familiar e desintegração
social, com diversos bairros sob controle de grupos de traficantes atuando como
milícia, ao mesmo tempo em que promovem o amplo consumo de drogas,
principalmente entre o público jovem, vítimas de índices absurdos de violência
e marginalizados por uma sociedade com elevada concentração de renda,
resultando na ampliação de ocorrências de crimes contra o patrimônio nos
bairros mais ricos, gerando crescente sentimento de insegurança – contexto
típico de sociedades muito desiguais.
O caminho para
alcançar esse objetivo (continuidade) e superar obstáculos reconhecidamente
difíceis, passa, necessariamente, pela articulação do conjunto das forças
políticas e sociais tendo por objetivo a ampliação dos espaços de participação
dos cidadãos e da sociedade civil na definição desse novo projeto. Será
possível adquirir autonomia frente aos ciclos eleitorais?
A participação ativa
da sociedade organizada é fundamental para ampliar a representação dessas
forças na composição dos parlamentos e na eleição de gestores comprometidos com
a luta desses segmentos, ainda que não se tenha segurança acerca da estrutura
de articulação interna do Poder Municipal, suas instâncias e se os mecanismos
de participação são relevantes para sua sustentação política e sua efetividade.
Afinal, governos de coalisão são…
governos de coalisão.
O quadro atual de
convergência entre as forças que compõem os Executivos municipal e estadual é
um indicador propício a que avanços possam ser alcançados. Apesar das críticas
que registramos em relação aos problemas que podem decorrer dos chamados
governos de coalisão, entendemos que eventuais divergências circunstanciais ou
mesmo conjunturais podem ser superadas, desde que se construa essa unidade com
base na convergência daqueles que estejam identificados politicamente com os
mesmos objetivos estratégicos referenciados pela ética na política, pelo
aprofundamento da democracia, ampliação da cidadania e na capacidade técnica e
administrativa, de modo a promover as transformações sociais, econômicas,
ambientais, urbanísticas, culturais e políticas que Fortaleza, de há muito,
está a carecer.
Sabemos que os
limites existem e a arte da política é, basicamente, negociar, compor e
recompor, consolidar avanços, desde que a ética seja a grande referência.
Difícil fazer? Sim, porém absolutamente necessário.
A atual
administração municipal, legitimada pelas urnas, ao elaborar o Plano Fortaleza
2040 assinala não poder se escusar dos desejos da sociedade na (re)construção
de uma Fortaleza conectada, com equidade, acessível e justa, por meio da
inclusão social, da redução das desigualdades, da ampliação da mobilidade
urbana, da promoção da cidadania e do fortalecimento da democracia.
É fato que o país
passa por um momento difícil e de alta complexidade. Partindo de uma proposta
de construção de um Estado que, pela via democrática, valor universal
inquestionável, ampliasse a participação popular na condução dos seus negócios,
perdeu-se em concessões na manutenção de um governo de composição. Embora se
possa ter uma compreensão dialética do processo que se desenvolve em um governo
de composição, se tem-se limites para
consolidar os necessários avanços, deve-se ter limites para a aceitação de
certas práticas. Há sempre que se cuidar para que governos de composição não
venham a se transformar em governos em decomposição a partir da ação deletéria
de seus próprios aliados.
Apesar de tudo é
preciso reconhecer que a história universal é rica de exemplos em que forças
políticas se aglutinaram em torno de objetivos estratégicos comuns. Não nos é
difícil identificar, para o caso da nossa cidade, que essas possibilidades
existem e os novos rumos que necessitam ser imprimidos à uma administração de
caráter verdadeiramente transformador.
A cidade de Fortaleza,
abrigo de tantos movimentos libertários e republicanos, não pode, em respeito à
sua história, deixar de buscar a promoção dos necessários avanços com vistas à
construção de uma cidade de todos, ou
seja, o objetivo deve ser a busca de uma modernização democrática, portanto
includente, a se contrapor às práticas que trazem em seu cerne a segregação e a
exclusão.
Não cremos que
planos corretos e adequados tecnicamente possam, por si só, superar
os conflitos aí postos quando questões centrais se fundam na correlação
de forças presente em nossa sociedade. O que devemos é buscar uma condição onde
grupos de indivíduos situados nos diferentes pontos da hierarquia social possam
negociar seus interesses como iguais, permitindo a regulação dos conflitos e a
ampliação da igualdade pela gestão das políticas públicas. Fazer esse
contraponto. Questionar (ou romper?) paradigmas. Fazer do usuário da cidade o
grande aliado na implementação dos programas. Os insucessos por conta da
inexistência de uma cultura de planejamento e da descontinuidade não devem
levar à resignação. Ao contrário. Sempre haverá um poeta a lembrar:
Se
as coisas são inatingíveis... ora!
Não
é motivo para não querê-las…
Que
tristes os caminhos, se não fora
A
mágica presença das estrelas!
(Mário Quintana)