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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Salão universo

Romeu Duarte 

Há anos frequento uma humilde barbearia na Padre Valdevino, quase esquina com a Aguanambi, no Joaquim Távora

Na manhã em desalinho, meu aspecto no espelho era ver a maquete do fim do mundo. O cabelo grande e revolto eriçava-se numa rebeldia para além do frenesi. “Ah, se eu também pudesse pentear minha cara”, a frase de Charles Bukowski escrita com tinta invisível nos azulejos do banheiro. A água do chuveiro carregava ralo abaixo as impurezas do corpo, deixando as da alma intactas. O sabonete negro era meu útil e perfumado confidente naquela vã ablução. Toalete feita, pano passado, rumo decidido, decretei a providência do dia: “Após a aula, cortarei o cabelo. Não há quem me faça voltar atrás”. Os passageiros do ônibus pareciam apoiar a minha decisão, mesmo calados e envolvidos com seus próprios problemas. Do lado de fora, a cidade, desgrenhada e metida numa canícula dos diabos, também andava precisada de cuidados semelhantes aos que eu me reservara.
Expediente findo, direto a caminho do salão. Há anos frequento uma humilde barbearia na Padre Valdevino, quase esquina com a Aguanambi, no Joaquim Távora. Antes de ser dela freguês, agradava-me a singeleza de sua aparência de estabelecimento interiorano, um pedaço do sertão em Fortaleza. No seu lá dentro, escancarado para a rua, dois barbeiros a mourejar as madeixas de um bom número de clientes. Absolutamente distante do luxo encontrado nas da Aldeota, destas, no entanto, ganhava em charme e graça, com o realce do tom azul da porta metálica de enrolar e do fronteiro pé de benjamin. Mas, talvez, o que me fez ficar seu cativo foi a proximidade do Grupo Escolar Visconde do Rio Branco, seu vizinho imediato, onde fui alfabetizado por minha mãe e conheci minhas primeiras professoras. Consuelo, Eglacine, Joselina, Lastênia, Osarina, Zita, seus curiosos nomes são parte do perfume de minha intangível madeleine.

Em lá chegando, recebeu-me o Bigode, acomodando-me na desgastada cadeira Ferrante. Os cartazes de “fiado só amanhã” e “fiado só quando este olho piscar” estampavam as paredes, severos avisos aos desprevenidos. Calendários com orquídeas e cachorros nos alertavam sobre o correr do tempo e as agendas que sua marcha nos impõe. A bancada ostentava uma coleção de velhos instrumentos de peleja e sobrevivência, duplicados pelo espelho implacável. Pelo chão, tufos de cabelo moviam-se com a brisa quente do início da tarde, restos humanos que lembravam os rolos de mato seco das cidades abandonadas dos faroestes de antigamente. Coberto com um avental, preparei-me para o ritual da minha transformação em um outro eu, possivelmente mais apresentável. O outro barbeiro, àquela hora desocupado, aparava as próprias unhas assobiando um forró de plástico.
Com seu cliente devidamente instalado, o fígaro, dono de um moustache pintado da cor da asa da graúna, começou o seu trabalho terçando pente e tesoura, tendo meu cabelo como campo de batalha. “Pode ser que chova, pode ser que não. Se chover, é melhor”, filosofou do alto do seu amplo conhecimento das intempéries. Sinal fechado, carros parados, seus ocupantes aproveitavam para contemplar a operação em curso na loja. “Cultivando piolho?”, “Desista, não dá para ficar melhor do que isso não, macho”, “Cuidado para não perder a orelha”, “Vai pintar de louro ou vai fazer luzes?”, “Aproveita e bota laquê”, “Vai cortar igual ao do Neymar?”, as piadas se nos amontoavam nos ouvidos, o sempre cáustico, debochado e oportunista senso de humor alencarino pendurado nos cínicos sorrisos das caras. “Vão se lascar, magote de corno, vão arrumar o que fazer, fuleiragem”, a resposta anasalada do Bigode, no mesmo tom. Um amigo, aboletado em reluzente carro do ano, fez que não me viu, arrancando rapidamente assim que o semáforo esverdeou, decerto contrafeito com a minha presença em tão modesto estabelecimento. Aqui é assim: as pessoas se incomodam, se vexam, se arreliam com os modos simples dos outros.
“Tenho duas notícias ruins e uma boa para você. O que quer ouvir primeiro?”, disse-me o Bigode, enquanto eu apreciava os detalhes arquitetônicos neocoloniais da velha escola em frente. “As ruins antes”, escolhi eu. “Você está ficando careca e o seu cabelo está embranquecendo”, lamentou ele. “E a boa?”, indaguei-lhe. “Seu cabelo está ficando bom, liso que só professor do Estado”, riu-se da minha má sorte, ao tempo em que arrematava sua tarefa com uma providencial borrifada de talco em meu cangote. No espelho, uma figura recém saída de uma faxina capilar me observava, absorta. Espanei os pelos renitentes, paguei os serviços do profissional e peguei o beco, nem melhor nem pior do que era, apenas o mesmo sujeito com menos cabelo na mesma cabeça de vento.
 Jornal O Povo - Caderno Vida&Arte - 18.03.2013

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