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terça-feira, 28 de abril de 2015

Ela, a Tal

Coluna | Romeu Duarte

Atarefado com vários afazeres do cotidiano, nem dei fé quando ela entrou e sentou mansamente na cadeira do outro lado da mesa de trabalho. Trajava um elegante vestido negro da cor da noite e me fitava com um olhar penetrante. Não se pejava da densa cabeleira branca que lhe adornava a cabeça. Apesar da idade, tinha um belo rosto, rugas aqui e acolá, e um corpo ainda rijo. Dir-se-ia uma coroa bem apanhada, insinuante. “Quem é você? Como entrou aqui?”, quis saber. “Sou exatamente quem você está pensando. Não preciso bater na porta para entrar nos lugares e fazer o meu serviço”, respondeu-me com um risinho no canto dos lábios, a voz modulada. Gelei. Era ela, a tal. A de mais de mil nomes, sempre indesejada e inoportuna, a megera, a rainha do ponto final.

“Então, dona, é chegada a minha hora?”, perguntei-lhe aflito. “Calma, baby, que você tem ainda uma boa quantidade de anos para curtir aqui no planetinha. Qual é, a gente não pode simplesmente aparecer para bater um papo? Não era você, nos últimos dias, que estava reclamando que eu andava levando todos os seus conhecidos para o breu? Você me invocou, cara, agora aguente. Aliás, você tem uísque aí? Essa conversa está me dando uma sede danada”, disse ela, cruzando as pernas. Providenciei o cachorro engarrafado, honesto e de boa marca, que ela bebeu cowboy. “E eu pensava que você era uma velha horrorosa, com uma verruga enorme na ponta do nariz, carregando uma foice amolada”, brinquei. “Coisas da Idade Média, moço sem imaginação”.

“Bem, se a minha conta não foi encerrada e se você se sentiu tirada a terreiro”, disse-lhe mais descansado, “lá vai: não houve semana neste 2015 em que eu não tenha ido a pelo menos um velório ou sepultamento. Estou começando a ler o jornal pelo obituário. Minha bolsa, minhas gavetas estão cheias de santinhos do povo que tem papocado feito mosca por aí. Já sei de cor as letras das músicas das missas de sétimo dia. Por falar nisso, ao final dessas cerimônias, que negócio chato é a chuva de elogios que parentes e amigos costumam despejar sobre o falecido, não é mesmo? Parece que foi um anjo que subiu aos céus...”. “Ah, empolgou-se, foi?”, riu-se ela, “resolveu soltar a língua?”. “É que a morte, mesmo sendo um assunto sem vida, me inquieta, só”.

“Garoto, do alto da minha experiência, digo-lhe apenas isso: o tempo das chegadas, para você, já passou. Você está agora no tempo das partidas, do amargar as notícias ruins, do ruminar as perdas, que são muitas, diárias, doídas. Há que se preparar para essa parada. Tenho acompanhado seu calvário, que começou em janeiro, com a despedida da senhora sua mãe, e se estende até hoje, com o passamento do seu amigo do Colégio Cearense. Amanhã e depois tem mais, você não perde por esperar”, curtiu a criatura, sorvendo um golinho do legítimo escocês. “Como você é cruel, sujeita”, devolvi-lhe na bucha. “Eu, cruel? Apenas não enjeito tarefa. Sou profissional. Como disse aquele cantor bonequeiro, o Jim Morrison, ninguém sai daqui vivo. E aí?”.

Levantei-me e peguei-a pelo braço. “Você não tem o direito de vir aqui e tirar sarro com a minha cara, vagabunda! Ponha-se daqui para fora, já!”, gritei-lhe. “Vou se e quando eu quiser, abestado. A propósito, estou conjeturando se não seria este o momento de rever a sua agenda comigo, cabra insolente”, silvou a víbora. Devo admitir que, com essa, tremi na base. “Covarde”, zombou ela, “você é igual aos outros. Todo metido a pai d’égua e mijando nas calças com medo de mim”, transmutando-se às gargalhadas numa nuvem de enxofre. Então foi a minha vez de tomar uma dose para acalmar os nervos. Como acreditar que discuti com a Magra e saí ileso da contenda? Melhor respirar o ar puro da tarde. Lá fora, um lixeiro varria a calçada: “Doutor, tá se acabando é tudo”.


Fonte:Opovo

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