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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

"Jangada, engenho e arte": Ana Miranda

Daqui avisto as velas alvas e belas das jangadas, que dão encanto e poesia ao mar, e com sua leveza de ave acrescentam uma impressão de suavidade à paisagem. Agora mesmo, ao cair da tarde, posso ver algumas velas abertas em terra, com as pontas graciosamente curvas, arejando-se depois uma viagem marinha. Quando vou caminhar na areia, pela manhã, o espetáculo da saída das jangadas é sempre fascinante. Às vezes surpreendente, como no dia em que vi uma carroça puxada por um cavalo adentrando o mar, até chegar ao lado de uma jangada, creio que para entregar gelo aos pescadores. Quando eles vão para a pesca de dormida, em alto-mar, demoram a sair, pois precisam levar gás, lamparina, muda de roupa, muitas coisas... e ficam ali na areia, conversando, na maior calma. Chega um, outro, isto, aquilo... Tudo pronto, decidem partir. Vejo aquele nem tão grande esforço para rolar o imenso peso areia abaixo, as velas já enfunadas, nas quais eles vão salpicando água, até o momento em que a jangada entra nas ondas e começa a flutuar, subitamente leve, solta, soberana. É um momento de magia, quando barco e pescador encontram sua verdadeira natureza, e os homens rudes que lutam pelo dia a dia parecem se tomar de uma divindade interior, que os transforma não em deuses, pois continuam mortais, mas entidades capazes de enfrentar os trabalhos do mar, como os heróis, como Ulisses. Acaba a conversa, a movimentação descontraída, acaba a distração... Eles se transformam por uma força interior, feita de coragem, disciplina, confiança, consciência do perigo, estado de alerta... São dotados de um conhecimento aplicado, verdadeiro, tradicional. "Pescador é filho de pescador". Lá vai ela... Minha jangada de vela, que vento queres levar? De dia, vento de terra, de noite, vento de mar.

Acho belíssimas as jangadas, sinto por elas o maior respeito. Elas guardam um conhecimento milenar, têm uma história antiga de lenta evolução e adaptação às características de nossa costa cearense. Sua ideia começou com os troncos simples usados pelos povos primitivos que depois aprenderam a amarrar vários paus, impelindo a balsa com uma vara. Por influência dos portugueses, seu vasto conhecimento marítimo e sua experiência por oceanos longínquos, a balsa dos índios passou a levar uma vela pequena, quadrada, asiática. Depois foi se adaptando, recebeu vela latina, bolina, remo de governo, e tomou a forma que hoje conhecemos.

Parece um barco precário, mas não é; é apenas artesanal. Sob os olhos de qualquer moderno conhecedor de embarcações, a jangada é um fenômeno de engenhosidade e arte, um barco absolutamente fantástico, que une elementos antiquíssimos a inovações surpreendentes. Um dos maiores defensores da jangada é o navegador, amante e construtor de barcos, Amyr Klink, que declara seguidamente as qualidades dessa embarcação. A jangada de piúba é o único barco a vela sem leme. É, segundo Klink, o barco de pesca "mais genial do mundo", de "extrema sofisticação não só de execução, mas conceitual, também". É totalmente adaptada ao meio. O casco, de madeira natural da região (hoje é proibido o corte da piúba), não submerge em caso de adernar. As velas são perfeitas para o regime de nossos ventos. O fundo resistente e plano é ideal para vencer nossos mares, arrecifes, ondas, correntes, e para as chegadas na areia. A manutenção e os consertos são simples, e feitos pelos próprios pescadores. Os mastros vergam-se, navega-se com velocidade em qualquer rumo, e é possível uma manobra impressionante de orçar a quarenta graus contra o vento. Não há uma única peça de metal, prego, parafuso... a jangada é construída num sistema secular de encaixes e amarrações, tão sofisticado que "nenhum engenheiro da Nasa consegue entender como se faz isso", afirma Klink. Ele também destaca o fato de a jangada poder ser levada com agilidade à terra, pois um dos maiores problemas dos barcos costuma ser o ancoradouro. "A jangada é uma máquina perfeita".

No Museu Nacional do Mar, na costa de Santa Catarina, há uma sala de jangadas. E é do pessoal desse museu a seguinte frase, dirigida a nós, os donos das jangadas: "Estes barcos extraordinários, uma das mais interessantes embarcações tradicionais do mundo, estão virtualmente extintos no Brasil. As jangadas são parte integrante da imagem do Nordeste brasileiro e sua conservação deveria ser assunto de segurança nacional". Ainda temos as jangadas de tábuas, bonitas, um pouco mais confortáveis para os pescadores. Mas, até quando?

Coluna ANA MIRANDA/ O POVO em 22/01/2010

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