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sexta-feira, 15 de abril de 2011

Carlos Leite: O ensino de arquitetura no Brasil não vai bem.


O ensino de arquitetura no Brasil não vai bem. Em um País que soube se inserir entre as principais potências da arquitetura mundial com obras de excelência e com a construção de uma escola nacional, é surpreendente o panorama do ensino atual. Minha argumentação sustenta-se em seis questões essenciais:

1. Vive-se uma massificação na educação superior do País e o ensino de arquitetura infelizmente não é exceção. Massificação com mediocrização. 197 escolas cuja qualidade média é baixa. Uma falácia da pseudodemocratização do ensino superior cuja face real é a transformação do ensino em negócio de alta e fácil lucratividade. Abrem-se escolas, faculdades e universidades como se abrem padarias no Brasil de hoje. Há que se discutir urgentemente esse modelo. Veja alguns exemplos internacionais: a prestigiosa Universidad Nacional Autônoma de México (Unam) possui em seus vários campi quase meio milhão de estudantes. A Universidade da Califórnia, terceira melhor universidade pública do mundo, possui mais de 220 mil alunos em seus 10 campi. Se a questão é atender uma demanda crescente, não seria mais interessante as boas e mais tradicionais escolas de arquitetura (públicas e privadas) oferecerem mais vagas em vez de essas vagas serem ofertadas por escolas ordinárias que se espalham pelo País?

2. Há uma burocratização dispersiva do ensino de arquitetura que leva perigosamente à ignorância. Excesso de normas e regras que culminam em um sistema que se pauta, essencialmente, por uma postura meramente tarefeira cujo sintoma maior é o excesso de disciplinas onde "mais" tem sido "menos". O tão comentado currículo mínimo é mínimo mesmo na maioria das escolas e leva ao excesso burocrático. Nas melhores escolas do mundo um termo (ou semestre letivo) possui quatro ou cinco disciplinas. Por aqui são 10, 13 disciplinas. Resultado: tarefismo com pouco conteúdo e alunos dispersos. O segredo por lá: os estúdios (ateliês de projeto) recebem professores de diferentes conteúdos e enfoques, não apenas o professor de projeto. Visite-se, por exemplo, um estúdio na Universidade Columbia e se encontrará com frequência no debate (e embate) com os alunos, Steven Holl (professor de projeto, responsável pelo estúdio) e Kenneth Frampton (professor de história) ou Richard Plunz (desenho urbano). Obviamente, não se deve eliminar disciplinas teórico-expositivas. Mas há um excesso de compartimentação, e conteúdos teóricos e práticos podem e devem andar juntos.

3. Quase não se construiu no Brasil modelos diferenciados de escolas de arquitetura. Ao contrário dos países com forte tradição de ensino de arquitetura, por aqui as escolas homogeneízam-se. Num país continental e rico em diversidade isso é contrário à emergência de riqueza cultural e educacional. Pouquíssimas escolas possuem alguma identidade própria forte, diferenciada, ligada ao seu contexto, tradição de pensamento e cultura locais, de currículos diferenciados e específicos.

4. Praticamente não há espaço para a experimentação. Investigação como fonte de construção do saber arquitetônico, inovação, especulação consequente de ideias, pesquisa em projeto/projeto como pesquisa, enfim, são posturas não incentivadas de modo geral. "Design thinking" ainda é incipiente em nossas escolas. Não há escola por aqui que se paute como investigativas, diferentemente dos maiores centros internacionais onde sempre há "a" escola onde investigar é a pauta essencial, até para contrapor-se às demais, de postura mais técnica ou tradicional. A excelência do ensino em Londres dá-se por haver uma tradicional Bartlett School of Architecture (University College of London) e uma experimental Architectural Association (AA). Assim como em Nova York se tem a Universidade Columbia e a Cooper Union. Em Los Angeles há a Ucla (University of California, Los Angeles) e a SCI-Arch (Southern California Institute of Architecture). Na Holanda, a TU Delft e o Berllage Institute. Para cada escola mais tradicional, completa, pautada pelo rigor da técnica, há uma escola especulativa, experimental. Aqui criou-se um falso dilema entre ambas e quase eliminou-se o segundo enfoque, mais investigativo. Ficamos mancos.

5. Falta de rigor. Como tanta coisa no Brasil, há uma carência de postura ética pautada pelo rigor e seriedade no ensino, seja por parte dos gestores institucionais, dos professores ou dos alunos. Modo geral, impera ainda o preconceito às avessas, onde o aluno ou professor sério, estudioso e dedicado é visto como "nerd" ou "cdf". "O sujeito que estuda é solapado, a expressão "cdf" é trazer para baixo aquele que está lá em cima, para ver se deixam-se todos medíocres", disse em um discurso Fabio Barbosa, presidente do Grupo Santander. O oposto do que se encontra nas melhores escolas do mundo, onde esse acadêmico é invejado por colegas, admirado pelos professores e alunos e premiado pela instituição. Meritocracia, lá fora, é bem-vinda. Vale para os melhores alunos que recebem prêmios por isso, vale para os melhores professores, que são valorizados e disputados pelas melhores escolas. Vale para as melhores escolas que são mais concorridas e recebem mais verbas para ensino e pesquisa. Para isso há critérios objetivos e transparentes baseados em mérito. Não há medo de rankings e avaliações sistemáticas e de resultados. Isso na Europa, Japão, Canadá, Austrália e Estados Unidos, onde as escolas (em todos os níveis, inclusive graduação) são ranqueadas anualmente e essas informações são públicas. "Em Harvard a moeda corrente são suas notas. Pouco importa seu pedigree. Para compensar esse recém-adquirido sentimento de inferioridade, você acaba estudando o tempo todo", relata Gustavo Romano, com mestrado em direito realizado na Universidade de Harvard, em depoimento à Folha de S. Paulo (16/09/2010). É parte intrínseca do rigor que imputa qualidade ao sistema. É democrático perante a sociedade que, ao final das contas, paga pelo ensino (direta ou indiretamente).

6. Novos enfoques e olhar abrangente. As escolas deveriam ser sempre organismos vivos que se atualizam, mantêm-se minimamente flexíveis e permeáveis à inter e à multidisciplinaridade, além de novas demandas. Dois exemplos recentes: enfoques sobre a produção imobiliária (Real Estate, como se tem em tantas escolas no mundo) e sustentabilidade na arquitetura e urbanismo (Green Design). No primeiro caso, ao se manter preconceituosamente distante do mercado, as escolas de arquitetura deixam de pautá-lo - em São Paulo, surpreendentemente, há um programa de Real Estate em universidade pública, mas na Escola Politécnica da USP. No segundo caso, as escolas ainda estão tímidas em abraçar o tema com profundidade e amplitude, deixando-o para cursos de capacitação em certificação verde em vez de enriquecerem o assunto como ele merece. Trata-se, afinal e inclusive, de oportunidade rica de revalorização do profissional arquiteto e urbanista na sociedade: desenvolvimento sustentável, a sério, é o maior desafio do planeta no século 21 e a nossa profissão pode fazer muita diferença no cenário.

Exceções. Como sempre, servem para confirmar a regra geral e, óbvio, são muito bem-vindas. Não há mistério. As poucas escolas que conseguem fugir do panorama geral têm história, pertencem às raízes do ensino de arquitetura no Brasil. O pioneirismo - pela história e pela presença dos grandes mestres - das escolas carioca e paulista fizeram emergir instituições de ótima exceção: UFRJ (derivada da pioneira Escola Nacional de Belas-Artes, 1945), FAU-Mackenzie (1947), FAUUSP (1948). A sabedoria em construir uma tradição própria com inovação e rigor no ensino e pesquisa tem construído a boa reputação de UFRGS, USP-São Carlos, UnB, UFSC, UFPR, UFMG, UFRN, UFBA, PUC-PR, PUC-RS e PUC-MG para citarmos algumas evidências, dentre públicas e privadas.

Assim, vivemos hoje uma situação perigosa. Escolas de arquitetura que estão mais para fábricas de expedir diplomas do que para formar pensadores de construir cidades e edifícios.

E, note-se, (a) a situação já foi alertada antes e (b) incorpora graduação e pós-graduação, conforme Edson Mahfuz mostra em artigo. "O objetivo do ensino em qualquer universidade, especialmente as públicas, não deveria ser a mera obtenção de títulos, mas a formação de uma profissão. Nos últimos 20 anos o número de escolas de arquitetura saltou de pouco mais de 30 para mais de 130. Na grande maioria dessas escolas o ensino de arquitetura se afasta da formação profissional e cada vez mais visa à mera concessão de títulos. As escolas públicas não ficaram imunes a esse vírus e até a pós-graduação se viu afetada, pois a exigência feita pelo MEC de que os professores universitários devam ter pelo menos grau de mestre detonou uma verdadeira corrida à titulação", expõe Mahfuz.

Meu argumento é de que isso não se reproduz mundo afora. O Brasil tem 197 escolas de arquitetura e urbanismo e população de 190 milhões de habitantes. Cerca de uma escola para cada 970 mil habitantes.

Vamos às situações em alguns países de produções arquitetônica e acadêmica consagradas.

Estados Unidos: 96 escolas e população de 310 milhões de habitantes. Uma escola para cada 3,2 milhões de habitantes. Canadá: 11 escolas e população de 34,3 milhões de habitantes. Uma escola para cada 3,1 milhões de habitantes. França: 22 escolas e população de 65,4 milhões de habitantes. Uma escola para cada 2,9 milhões de habitantes. Espanha: 29 escolas e população de 46,1 milhões de habitantes. Uma escola para cada 1,6 milhão de habitantes. Reino Unido: 43 escolas e população de 60,9 milhões de habitantes. Uma escola para cada 1,4 milhão de habitantes. (Os números foram extraídos dos institutos/colégios de arquitetura desses países. Nem todos são muito claros sobre o número exato de escola creditada. No caso de países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, foram indicados programas que mais se aproximariam às nossas escolas, ou seja, os M.Arch e não os B.Arch).

À massificação do ensino no Brasil alia-se outro fator agravante: a ausência de exame de ordem.

Nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido o exame de ordem não apenas existe, como é rigorosíssimo. Nos Estados Unidos, o futuro arquiteto estuda, em média, seis anos em período integral (essa balela de estágio enquanto se estuda é outro vício pernóstico nosso), para posteriormente ser trainee na práxis (mercado ou setor público) e, então, submeter-se ao exame de ordem: exaustivo, realizado em vários dias de provas e com média de reprovação de 70%.

Resumo da ópera: não é fácil nem para qualquer um tornar-se um arquiteto ou urbanista nesses países. Exige muito estudo, seriedade, rigor. Suor, lágrimas e paixão. A recompensa? Reconhecimento da sociedade. A profissão é valorizada, porque não é mediocrizada.

Ruth Verde Zein joga luz no tema: "A universidade e o curso de arquitetura não existem apenas para 'treinar' os estudantes para que saibam responder a determinadas demandas concretas, mesmo que paradigmáticas (ou seja, com um certo grau de generalidade); mas igualmente para prepará-los para a produção de conhecimentos novos, seja sabendo responder casos não paradigmáticos e situações inusitadas, seja sabendo exercitar, também criativamente, os cada vez mais amplos domínios da disciplina arquitetônica - que embora ainda esteja, e sempre estará, centrada no projeto, não se limita a ele".

Há alguns anos uma ex-aluna minha, regressando da canadense Montreal, relatou-me curiosa que, recém-chegada à cidade e apresentando-se arquiteta e urbanista com suas feições de uma jovem de 23 anos, todos se espantavam: "arquiteta e urbanista já formada, e com essa carinha de menina? Quantos anos se estuda essas profissões no Brasil?".

Mas nossos alunos são surpreendentes, ainda bem. Apesar de todos os problemas e limitações do sistema, sempre emergem alunos investigativos, genuinamente descontentes com a mesmice e o tarefismo do sistema. Sabem que se formar arquitetos-urbanistas é muito mais que passar nas dezenas de disciplinas com as notas mínimas ou aprender a detalhar objetos arquitetônicos. Apaixonados pelo estudo da arquitetura, dedicados e estudiosos. Que buscam, no território de nossas problemáticas cidades, inquietações que determinam pesquisa no projeto e constroem durante alguns meses nos ateliês perguntas interessantes - com discussão coletiva de projeto, com professores e alunos juntos e não "fazendo atendimento de projeto" (como se o professor fosse médico). E dessas questões saem projetos como pesquisa.

Tenho certeza de que algumas de nossas escolas ainda emergem, vez por outra e apesar do sistema, tais alunos.

As imagens que ilustram este artigo são de dois deles, Gustavo e Marcela, formando-se agora na FAU-Mackenzie. Seus trabalhos refletem uma busca bonita por uma arquitetura na cidade, onde os limites entre arquitetura e urbanismo são fluidos e cujo mote maior é questionar e propor concretamente, como designers, possibilidades de refazer trechos complexos e de enorme exclusão social da metrópole paulista.

Fonte: Revista AU/ "Carlos Leite analisa o ensino de arquitetura em nova série de artigos

Ensino de arquitetura: o Brasil perdeu o rumo?" http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/203/imprime208856.asp


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