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segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O ARQUITETO DEMOLIDO - por Romeu Duarte

O ARQUITETO DEMOLIDO

(A Régis Freire, colega e amigo)

Ele preparara tudo com muito cuidado e carinho. Experiente no métier, havia sido escolhido por aqueles especiais clientes pela qualidade de trabalhos anteriores. Fora treinado na escola de arquitetura para ver a residência como uma máquina de morar, eficiente e racional. Inteligente e criativo, sua refinada sensibilidade, entretanto, levou-o a uma consideração poética sobre a moradia, algo mais próximo a abrigo sob a chuva fina da serra, sombra filtrada de mangueira, beleza de orquídea brotando lilás.
Soubera pacientemente ouvir aquela família numerosa e detectar suas necessidades e aspirações. Os apartamentos com jeito de casa, o verde sempre à vista, os espaços generosos e ventilados, a garantia das individualidades, a entrada pela varanda sombreada. O terreno da então deserta Aldeota, na quina da quadra, lavado pela brisa salgada do mar próximo, pedia para ter seus segredos decifrados. Sua melhor amiga, a geometria, aguardava com calma que o grafite e a escala lhe tornassem presente e útil.
Antes de ser coisa, o prédio fora sonho, idéia, lampejo. O rigor do método expresso nos vários papéis rabiscados, croquis de si para consigo, lembretes do agora dirigidos ao depois. No projeto, o arquiteto, feito da mesma matéria dos astros, se projeta, risca e se arrisca, se entrega inteiro nessa luta renhida que é retirar do papel (hoje, do feixe de elétrons) aquilo que sempre esteve dentro de si, mas que, na verdade, leva tempo para encontrar e definir. O misto de ansiedade e angústia que acompanha o saber e o fazer, o conhecimento a transformar a natureza em artefato. Quantas noites insones, quantas vezes sua família na praia e ele no escritório a perseguir a solução certa e justa para o problema, a dor e a delícia de fazer arquitetura.
Pronta a proposta, a obra iniciada. A azáfama no canteiro, os detalhes revisados um a um, as plantas, cortes e fachadas saindo das pranchas e virando paramentos, vãos, balanços, seteiras. A família agora compreendia aquele código secreto: função, forma e significado traduzidos em concreto aparente, tijolo cozido, veneziana em madeira, brutalismo alencarino. O edifício, em seus matizes vernáculos, como uma fruta nordestina: austero por fora, doce por dentro, a luz e o vento perpassando as conversas familiares no fosso central, anima e cuore daquele lar amplo e magistral. Na cerimônia de inauguração, sob os aplausos dos satisfeitos clientes, agora amigos, em lágrimas declarou-se muito feliz com o edifício, a língua solta pelo champagne farto.
Trinta anos depois, o jornal com a infausta notícia sobre a prancheta, aquela mesma em que o prédio havia sido ideado por ele. Vendido pela família, o imóvel seria posto abaixo com urgência para a construção de um grande empreendimento imobiliário. Como a um filho, imaginava que lhe superasse em tempo de vida. Mas qual, o capital não tem pudores, tem metas, quase sempre opostas aos desígnios humanos. Em silêncio, arrumou-se para se despedir da desgraçada cria. O cabelo grisalho em desalinho, no espelho, traía o que lhe ia nas entranhas. O taxista bom de prosa não compreendeu por qual razão aquele homem grave e de olhos vermelhos pagara uma longa e cara corrida somente para deixar um bilhete amassado ao rés do chão daquele edifício velho e abandonado. “Arre égua, tem cada um que parece dois”, pensou ele debochadamente, mais preocupado com a péssima campanha do Alvinegro de Porangabuçu na Série B.

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