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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Alzheimer Blues


No horizonte, enquadrado pela varanda, o Cocó, faixa verde plena de vida, a vida que faz falta aqui
O táxi me deixa no portão do condomínio. Os domingos, antes alegres e ruidosos, há algum tempo abandonaram seu tom alvissareiro em troca de outro amargo, associado à dor de uma visita familiar. De cima de sua atalaia, o porteiro, com seu olhar vigilante, entoa um cumprimento entre formal e entediado. Na calma manhã de janeiro, após a ridícula prisão momentânea no cercadinho, cruzo o umbral que separa a rua do edifício, o público do privado, e ganho o caminho ajardinado. Em seguida, o vestíbulo de acesso, com seus granitos, obras de arte, tapetes e mobiliário, cuidadosamente agenciados para ninguém. Reconheço, no límpido espelho do elevador, o rosto daquele passageiro solitário, a bordo de um surrado chapéu panamá: é o mesmo que, logo mais, estará embarcando em outro táxi na busca sôfrega de um destino que corresponda à luminosa promessa deste dia.
A campainha impertinente desperta o olho e a fala da cuidadora. “Já vai”, diz a senhora tateando as chaves, a voz roufenha de gente gripada. Dou-lhe bom dia e pergunto por sua saúde. “Resfriado grande, pense num vento encanado, esse que vem lá do rio, só presta para lascar o cristão”, denuncia ela, a fronha, à guisa de lenço, enrolada entre as mãos rudes. Receito-lhe as mezinhas de praxe (“lambedor, que é bom, não tem mais, senhor”) enquanto lhe recomendo a cautela necessária para evitar a transmissão da moléstia às moradoras do apartamento. “Não, fique tranqüilo, fico só de longe, mas preciso trabalhar, não tenho ninguém por mim. As cuidadoras cuidam de quem carece de cuidados. Agora, quem é que cuida das cuidadoras quando elas estão mal?”, inquiriu, filosófica.
À volta, o ambiente caseiro em forma de museu que aprendi a chamar de lar: móveis antigos, bibelôs mil, o velho relógio art-déco, documentos de vidas dedicadas a uma recatada e austera domesticidade e de minha infância prudente. Os retratos sobre a penteadeira centenária dizem de sentidas ausências, meu pai, fardado, sorridente e de bigode no Rio de Janeiro, à frente de todas. A porta da cozinha, aberta, conversa com a da geladeira, abarrotada de víveres disponíveis a um dom culinário que já não há. No horizonte enquadrado pela varanda, o Cocó, faixa verde plena de vida, a vida que faz falta aqui, substituída por toneladas de um silêncio cinza e perturbador. O copo d’água de que me sirvo aplaca apenas a sede da língua, saariana, sem serenar o desejo de algo maior, insistentemente implorado em preces pagãs.

Sentada sobre o confortável sofá, o mingau deglutido às colheradas, de frente para o programa religioso exibido na TV de tela plana, ela, de robe creme e chinelinhos macios, me fita do fundo do seu abismo com seus olhos verde-azulados. Ao seu redor, os quadros e tecidos povoados com rosas, palhaços, damas antigas e os rostos infantis dos netos gritam em turbilhão: Que é de tanto vigor, sensibilidade e inteligência? Que é dela e do seu gênio? Quem velará por nós, já que nossa autora não nos reconhece mais? “Quem é o senhor e o que quer aqui?”, pergunta-me, a frase entrecortada de fonemas mudos ecoando na cabeça daquele que agora nada mais é do que um absoluto estranho para ela. Calado, penso: Qual o limite desse mal, o abandono de si num poço profundo e escuro, o olvido da própria vida? Demência, declínio do conhecimento, degeneração, fecho, é só isso? “No fim de tudo dormir. No fim de quê? No fim de tudo que parece ser”, o trecho do poema de Álvaro de Campos, o pessimista heterônimo de Pessoa, traduzido no belo sorriso sem nexo de minha mãe e a desmantelar o meu juízo de homem oco.
A informação em voz rouca da governanta me resgata do meu amuado torpor: “Ela não faz conta mais de comer e está dando um trabalho danado para andar, nem quer mais passear de tardezinha, ela. Enquanto isso, esta daqui, respondona, anda trocando o dia pela noite, dorme agora para não dormir quando é hora”. Chamada a terreiro, Tia Santa, a impossível outra residente, abre seu olhar cego, dá sinal de luz e fuzila: “É, não, é? Enredeirinha, você, né, bichinha? Tá doida para pegar o beco...”. Chamo o táxi redentor. Lá fora, o céu parece se arrepender: sobre o Dionísio Torres, nuvens pesadas se formam em silhuetas mutantes, garrafa, cadeira, automóvel, elefante
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