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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Aldeia, Aldeota

O Destaque "a bola de couro, pesada de água e areia, chutada pelo atacante do time do Campo do América, vara a rede puída e quebra o pára-brisa de outra possante máquina, igualmente trazida de fora"



Assis Ximenes

De minha varanda no alto, aberta para o nascente, eu vejo a vida. Como disse o vate Alvim, quem tem janelas, que fique a espiar o mundo. Meu universo é este território, vasto e complexo microcosmo da civilização humana, que vasculho com minha luneta terrestre. Não, nada de voyeurismo, apenas a simples curiosidade de quem pesquisa a vida alheia caçando assunto. Uma palavra, um piscar de olhos, um canto de pássaro, um cruzar de pernas, um dobrar de esquina e o mote está lançado. Sim, o velho lance de dados, no acaso do ocaso. Do meu aéreo parapeito, vislumbro este esparso lugarejo, pedaço disputado desta Fortaleza onde nem tudo que reluz é ouro. Reduto (refúgio?) da elite local pós-Jacarecanga fabril e operária. Antes, mostruário de mansões e ruas arborizadas; hoje, paisagem composta de áridos canyons de torres batizadas com nomes estrangeiros. Calçadas vazias, jardins despovoados, shoppings e academias de ginástica lotadas. Vadio, o olhar vagueia nas vias engarrafadas, nas veias abertas do dia banal.

“Oh, meu Deus, e agora?”, choraminga a moça fornida, o cabelo liso e longo em mechas louras, o luxuoso carro do ano importado, rudemente amassado pelo Voyage 1995. “Cada um paga o seu estrago”, pula de lá o invocado dono do calhambeque, “égua que aqui é assim, para dirigir tem que olhar para todos os lados, até para cima”. “O senhor vem de onde?”, quer saber a falsa blondie, olhos faiscando de ódio, I-phone em punho, seguro conectado e garantido. “Lá do Montese, dona”, confessa o pobre intruso. “Por que vocês vêm para cá? É só para dar prejuízo para a gente, né? Deveria era ter uma cancela na Rui Barbosa com a Antônio Sales. Esse povo do subúrbio só presta para isso...”. Pertinho dali, mais um acidente sócio automobilístico: a bola de couro, pesada de água e areia, chutada pelo atacante do time do Campo do América, vara a rede puída e quebra o pára-brisa de outra possante máquina, igualmente trazida de fora. “Vai ter que vender muito crack para pagar o malfeito, vagabundo, e aposto que ainda estava em impedimento, safado”, metralha a proprietária do veículo sinistrado, outra loura de araque. Escondido em cima da castanhola, nosso subnutrido Neymar, rindo, contabiliza os muitos gols e desastres.
 
No botequim elegante, o velho, já calibrado, dose de uísque à mão, goza: “Aqui é assim: as ruas se chamam Barão de Studart, Desembargador Moreira, Barão de Aracati, Governador Virgílio Távora. Lá (o braço desenhando um arco no ar, ou seja, o resto da urbe) é Tipógrafo Sales, Sargento Hermínio, Professor Anacleto, só dá lascado...”. Atravessando a rua, a desavisada cliente, de posses, porém desleixada, ambiciona o brilhante na vitrine da loja: “Quanto é a joia?”. A atendente, a franja blasé escondendo um dos olhos e revelando impaciência, dispara: “É caro, muito caro, minha senhora, não é para qualquer bico, não”. Logo à frente, no estacionamento, diz a patroa à empregada, sentada no banco de trás da station wagon nova em folha: “Não, mulher, o Beco da Poeira se acabou. Os camelôs agora estão na Praça da Estação. Já que tu parece com eles, tu desce, eu fico dando volta na praça, tu compra um monte daqueles vestidos estampados baratinhos para a gente vender como casual-wear na boutique”. Na porta da agência do banco, na quina da quadra, um coitado lamenta sua sorte: “Hoje, escapei de um sequestro relâmpago, evitei uma saidinha bancária, mas acabei morrendo com a carteira para o vendedor de bíblia. Agora o jeito é confiar no capeta!”. À volta, a torrente de carros, com seus condutores viciados em ar condicionado, impede a trupe de emos visitar o seu templo, a Praça Portugal.
 
No condomínio, o culto e solitário morador, no vazio do seu apartamento de 300 m² decorado à moda minimalista, navega em um site pornográfico e dá tratos à bola: “Fortaleza é a cidade mais densa do Brasil. Pirambu, Montese e Aldeota, nesta ordem, são seus bairros mais densos. Isso é bom ou é ruim? Sei lá, minha fome não tem nome”. Na torre de negócios, o empresário maquina: “Ela vai entender. Quando o metal sonante começar a tilintar, fará toda a diferença. Aquela imensa casa é a cara dela, como dizia meu falecido pai, mas nada de sentimentalismos nesta hora. Ali dá para fazer dois belos prédios. O diabo foi eu ter arrasado o bosque dela, pegou mal na cidade inteira. Mas ela vai aceitar, ora se vai, conheço a minha tribo”. No restaurante estrelado, o gordinho versado em vinhos e harmonizações dá show: “Fui criado na base de maria maluca com kisuco, mas agora é assim: confit de pato numa mão e uma taça de Tanat na outra. Meu nome é Lord Canelau”. No já antigo centro de compras, intelectuais denunciam o shopping center como não-lugar enquanto a associação de amigos e frequentadores do tradicional entreposto comercial inaugura uma placa em sua homenagem, ressaltando a sua condição de lugar de memória. Na passarela, a senhorinha, cheinha de corpo e também de louras madeixas mechadas (serão essas moças pré-moldadas?), hesita entre um brownie e um pretinho básico. À mesma hora, artistas de rua, vestidos como os Beatles, ensaiam a clássica foto da capa do Abbey Road no cruzamento da Gonçalves Ledo com a Santos Dumont, ao tempo em que o menestrel, no sarau do bar que nunca fecha, a todos encanta com sua canção marinheira.
 Aldeia, Aldeota, meu olhar bate em tua porta para lhe desvendar..






































ROMEU Duarte Junior,
Ex-Presidente Nacional do IAB- Instituto de Arquitetos do Brasil,
escreve todas as segundas-feiras no caderno Vida e Arte do Jornal O
Povo, Fortaleza-CE

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