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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A próxima vítima

Romeu Duarte, Conselheiro do IAB, escreve todas às segundas- feiras 
no Jornal O Povo, de Fortaleza.

Aí vem o pessoal dos direitos humanos para me pedir calma. Calma, uma ova! Direitos humanos para humanos direitos!

 A Fábio Campos

O senhor bem apessoado, sentado no banco reservado aos passageiros especiais do ônibus, proseava folgadamente com o motorista enquanto o coletivo ganhava velozmente a Treze de Maio. “Meu amigo”, dizia ele, “nós estamos é lascados. Lascados e mal pagos. Todos sofrendo nas unhas dos bandidos, que estão mandando nesta cidade, da Barra do Ceará ao Conjunto Zé Walter. Tenho é pena da gente, cidadãos desvalidos, nas garras desse bando de celerados, armados até os dentes”. Sua fala fazia-se mais gutural à medida que aumentava o seu aborrecimento. “Minha senhora”, falou ele para a companheira de assento, “uma tarde dessas, dois pivetes me escoraram ali na Praça da Lagoinha, cada um com um espeto de churrasco na mão. Me levaram de um tudo: carteira, celular, relógio, anel de casamento, óculos escuros. Arrastaram até o revólver que eu levava no cós da calça, por debaixo da camisa. Ainda levei umas pinicadas deles na bunda. Aí vem o pessoal dos direitos humanos para me pedir calma. Calma, uma ova! Direitos humanos para humanos direitos! Para cabra safado eu tenho é bala e muita!”, rugiu, vermelho em sua cólera de aviltado. O chofer, flanela amarela no pescoço, só fazia balançar a cabeça, concordando com tudo.
Postado logo atrás do infeliz idoso, seu palavreado fez meu pensamento voar para bem longe da Reitoria que passava rósea ao meu lado, indo se alojar em certo episódio de desventurada memória. Bar do Rinoceronte, noite de uma quinta-feira, lotação completa, mil promessas no ar, além da lua e das estrelas. Em meio aos chistes e drinques, surgem quatro garotos do nada, todos portando pesadas armas de fogo. “Boa noite, senhoras e senhores, ninguém aqui vai se machucar se fizer o que a gente mandar. Botem os pertences nestas sacolas aqui, ó. O vagabundo que se mexer ou falar leva chumbo. Todo mundo de cara pro chão”. O mais novo encostou o cano da pistola na minha têmpora e falou para o meu vizinho de mesa: “Eu não lhe pedi para o senhor tirar esses anéis de prata e me passar?! Tire eles logo e me dê, senão eu corto seus dedos e queimo este daqui!”. “Seria muito bom que você atendesse o rapaz”, ponderei ao meu colega, “afinal, você está sempre indo ao México, na próxima viagem você compra outros desses”, fazendo menção à minha delicada situação. Lembro do olhar de ódio do meu companheiro de infortúnio, lançado ao meliante e a mim também, pela pilhéria dita em hora imprópria, enquanto se desfazia dos seus queridos elos. De repente, o celular de um deles toca: “Alô, bebê. Amor, já não disse para não ligar quando eu estiver trabalhando? Pois é, xuxu, estou na luta. Ligo mais tarde, beijo”. Rapina feita, o produto do roubo era tão volumoso que o jeito foi transportá-lo em um dos carros dos convivas. Sorrindo, sumiram tão rápido quanto apareceram, deixando o pânico e a revolta no lugar do que nos foi subtraído.
De volta ao ônibus, já lotado e cruzando o Jacarecanga, conjecturei com meus surrados botões: Fortaleza, campeã nacional de assassinatos, palco de uma bem sucedida ronda de assaltos e de uma fracassada Ronda do Quarteirão, vives uma cotidiana e sangrenta guerra civil não declarada? Será que a tua condição de quinta cidade mais desigual do mundo, de vítima de um êxodo rural sem fim, de estar à mercê da miséria irada de tuas periferias, da ganância de tuas elites e do reacionarismo dos teus radicais de classe média não explica este teu preocupante estado? Não estaria a raiz destes teus conflitos fincada mais profundamente no processo civilizatório cearense, historicamente violento? Paulo Francis dizia que os Estados Unidos foram colonizados à base de ovos com bacon e Colt 45. Substituindo a gorda e deliciosa iguaria por uma tapioca, a coisa por aqui parece ter ido pelo mesmo caminho. Seriam reflexos disso a elevação da cruel vaquejada a patrimônio cultural do estado e a insistente defesa, nas redes sociais, da redução da maioridade penal? Fortaleza, meu bem, estás grávida de quem, quem parirás, anjo ou demônio?
Fui bruscamente retirado do domínio mental de minhas perplexidades pela voz do senhor bem apessoado, que, na altura da Catedral, já se preparava para descer da condução. “Até mais, camarada”, despediu-se ele do guiador, “vou ali no Shopping Chão para ver como andam as vendas de roupa da minha mulher. Estão com uma conversa aí de retirar o povo que vende confecções desse lugar. Vão tirar é chibata. Só sinto falta é do meu revólver, que deve estar por aí, pra cima e pra baixo, matando gente a torto e a direito. Quem sabe não sou eu a próxima vítima dele?”.

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