A Eugênio Coutinho
Diz o Chico
Alvim, poeta da minha predileção, que quem tem janelas, que fique a
espiar o mundo. Eis uma arte à qual tenho dedicado uma vida inteira.
Voyeur, flâneur, causer, estas três palavras do idioma de Balzac
requerem algum preparo de quem queira usá-las como definição de si. Ah,
quantos mestres desses ofícios não encontrei ao longo da existência.
Gente especializada em viver (há seres humanos que, mesmo vivendo, se
esquecem disto), em enxergar aspectos pitorescos nas pessoas e nas
coisas, o que mais tarde servirá de matéria à construção de sua
filosofia. Se esta será proveitosa ou vã, pouco importa. Relevante, sim,
é a sua condição de marca, pegada, digital de alguém. E são tantos os
vãos que se abrem à nossa vista, trazendo luz à alma.
Observo
os vendedores ambulantes nos sinais. O mesmo sujeito que vendia protetor
solar agora anuncia guarda-chuvas. Os que lidam com frutas conhecem bem
as ofertas da natureza no sutil desfilar das estações: ontem caju, hoje
seriguela, amanhã goiaba. Pequenos malabaristas fazem da rua circo,
seus exercícios de equilibrismo denunciando seu desequilíbrio social. Os
desocupados nas bancas das calçadas, ocupados demais com a decifração
do crepúsculo. As estudantes em seus uniformes justos, acariciados pelo
vento, devolvem a alegria aos olhos cansados do velho no bar do
Jacarecanga. A mulher na loja pedindo a cabeça dos suspeitos de sempre: a
seca, o governo, os políticos, o homem lá de casa que, acho, Seu Zé,
perdeu o gosto pela coisa.
O jornal de hoje pinga sangue e petróleo podre. A volúvel foliona, de
coração púrpura pintado na bochecha e abraçada ao amor de ocasião, nos
pisca o olho e promete um quente Pré-Carnaval para logo mais. Vendedores
clandestinos emergem do Buraco da Jia e cercam o Palácio do Bispo, ou
melhor, do Prefeito, lutando por seu direito líquido e certo de
privatizar o espaço público, sob a benção de Nossa Senhora estampada na
camiseta, que é só R$ 1,99, meu senhor. O senador de rosto recém
barbado, porém de cara lisa, bate boca com o colega caviloso, deplorável
pleonasmo. Um sorridente Papa Chico acena para a câmera, frondoso baobá
nesta paisagem cada vez mais Cantareira. Crianças são mortas pelos
radicais do Islã. Claro, viremos a página.
A televisão e suas
possibilidades, sempre tão mal aproveitadas. Muito acima dos escândalos e
desastres nacionais e internacionais, como uma lua cheia exibida,
desinibida e por todos admirada, paira a bunda da loira atriz global.
Será sua assombrosa sombra o tão ansiado refrigério para nossas misérias
cotidianas? O programa de calouros desnudos e de sexualidades mutantes
arrasta-se odiosamente como a corrente de um fantasma canalha. O
noticiário tendencioso dos canais sudestinos e seu sotaque carregado de
preconceito. O cabelo, a joia, o vestido, o sapato, o andar, o olhar, o
modo de beijar da moça da novela, itens de toda uma educação
sentimental. Uma banda de rock cult-bacaninha, com suas barbinhas tão
postiças quanto sua música, e la nave va.
A noite já cobre com seu manto este meu mirante. Deste privilegiado
posto de observação, assisto aos lares se acenderem numa miríade de
pontos luminosos, fazendo inveja às estrelas no céu. A cidade é essa
colcha de retalhos, alguns sedosos, outros puídos, costurados todos os
dias pelas nossas próprias mãos. Enquanto cometo este escrito, à caça de
um arremate, uma rara leitora bate o fio para denunciar o corte de uma
árvore de estimação na Rui Barbosa. O tom é de lamento e revolta, como
se chacinado um membro da família. O drama é legítimo: a aridez de mil
desertos, como dizia Nelson Rodrigues, além da face da Loura, parece ter
dominado, antes, os corações e mentes de alguns de seus poderosos
moradores. Ah, terra bárbara, diria Jáder.
Fonte:http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2015/02/09/noticiasromeuduarte,3389997/belvedere.shtml
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