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segunda-feira, 16 de março de 2015

De que são feitos os sonhos

Viver bem é o desejo de muita gente, o bem viver é popular. É meta anelada tanto pelo bacana de barriga cheia que bate panela na varanda gourmet quanto pelo ex-liso que retira o farto de comer da panela por muito tempo vazia. Se não der nesta vida, que na outra, se esta houver, a sorte nos sorria, pedimos conscientes ou inconscientes, todos os dias, todos nós. E para que nossos anseios se cumpram, haja reza para o santo que não falha, a suma divindade, o orixá porreta e um extenso etcetera de fé e milagres comprovados. Brasileiro, profissão esperança, bordão cunhado pelo dramaturgo Paulo Pontes, parece ser este o lema que levamos gravado na testa, de geração em geração. A cada manhã, inaugura-se um desafio a ser superado até o apagar da última estrela.

Vencido pelo exagero no álcool, foi-se o papudinho para a eternidade. Nunca fizera mal a ninguém, a não ser a si mesmo. Recebido com excelsas honras, na porta do céu, por um velho de barba branca vestido num camisolão esquisito, estranhou o tratamento prime que lhe foi concedido. “Égua, macho, lá em baixo era só abuso e enxame e aqui é esse rapapé todo, lai vai..”, disse de si para consigo. “Caro papudo”, falou-lhe o simpático ancião, “aguentaste na Terra o que o cão, infeliz arcanjo decaído, continua enjeitando no Inferno. É hora de dar um basta nesse sofrimento monstro e curtir a bonança que tu mereces. Entra, a casa é modesta, mas é tua”, convidou, solene. Com um ranger celestial, o portão se abriu e o coitado pôde então ver sua nova morada.

Ali sim, aquele era o ambiente com que sempre sonhara. Uma chuva torrencial caía sem parar sobre o telhado de uma latada confortável, bicas e jacarés para todos os gostos, a água batendo de com força no quengo só faltando rachar. Protegido pela coberta, um ambiente acolhedor com redes espalhadas, mesas e cadeiras à feição de um bar. No fundo, um fogão à lenha com três panelões fumegantes, até as tampas com cozido de boi, panelada e buchada. Ao lado, um açude sangrando com um imenso cardume de tucunarés e curimatãs ovadas. Ao seu dispor, um estoque infinito da branquinha e alguidares com alentadas provisões de cajá-umbus, siriguelas, tangerinas e cajaranas. “E tudo isso num clima de Guaramiranga em julho”, festejou o ébrio, batendo o centro.

Já devidamente vacinado e instalado como um paxá numa cheirosa tipoia branca, cismou de consultar a folhinha pregada na parede. Engraçado, todo dia era feriado, imprensado ou de fim de semana. Batente, nem pensar, sem culpas ou remorsos bestas. “Bom demais aqui”, espreguiçava-se, “nada de reclamação de mãe, esposa ou namorada, nada de liseira, nada de mendigar o litro diário, nada de policial mandando biriteiro desocupar o ponto. Até os bichos escrotos do delirium tremens desapareceram. Vou é trazer meus coleguinhas para cá, um por um, ora se não vou”, planejava, esfregando as mãos. À noitinha, friozinho bom de serra, os grilos cantando, a lua surgiu acompanhada de uns anjos camaradas empunhando violões em serestas mil.

Súbito, um buzinaço em dó-maior destruiu em pedaços o sonho do pobre embriagado, acordando-o para a dura realidade terrena. Alojado sob a precária marquise de uma loja de ferragens no Centro, o aflito bebum assistia ao enfadonho e barulhento espetáculo de carros emaranhados num engarrafamento dos diabos debaixo de um dilúvio idem. “Arre égua, onde foi parar o meu paraíso? Quero minha ilusão de volta”, reclamava ele, cansado de nada achar entre os teréns socados na sacola encardida. Revoltado, resolveu dormir para esquecer o devaneio. Na coxia, a correnteza feroz carregava a página solta de Álvaro de Campos: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Fonte:O Povo /Coluna Romeu Duarte

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