Viver bem é o desejo de
muita gente, o bem viver é popular. É meta anelada tanto pelo bacana de
barriga cheia que bate panela na varanda gourmet quanto pelo ex-liso que
retira o farto de comer da panela por muito tempo vazia. Se não der
nesta vida, que na outra, se esta houver, a sorte nos sorria, pedimos
conscientes ou inconscientes, todos os dias, todos nós. E para que
nossos anseios se cumpram, haja reza para o santo que não falha, a suma
divindade, o orixá porreta e um extenso etcetera de fé e milagres
comprovados. Brasileiro, profissão esperança, bordão cunhado pelo
dramaturgo Paulo Pontes, parece ser este o lema que levamos gravado na
testa, de geração em geração. A cada manhã, inaugura-se um desafio a ser
superado até o apagar da última estrela.
Vencido pelo exagero
no álcool, foi-se o papudinho para a eternidade. Nunca fizera mal a
ninguém, a não ser a si mesmo. Recebido com excelsas honras, na porta do
céu, por um velho de barba branca vestido num camisolão esquisito,
estranhou o tratamento prime que lhe foi concedido. “Égua, macho, lá em
baixo era só abuso e enxame e aqui é esse rapapé todo, lai vai..”, disse
de si para consigo. “Caro papudo”, falou-lhe o simpático ancião,
“aguentaste na Terra o que o cão, infeliz arcanjo decaído, continua
enjeitando no Inferno. É hora de dar um basta nesse sofrimento monstro e
curtir a bonança que tu mereces. Entra, a casa é modesta, mas é tua”,
convidou, solene. Com um ranger celestial, o portão se abriu e o coitado
pôde então ver sua nova morada.
Ali sim, aquele era o
ambiente com que sempre sonhara. Uma chuva torrencial caía sem parar
sobre o telhado de uma latada confortável, bicas e jacarés para todos os
gostos, a água batendo de com força no quengo só faltando rachar.
Protegido pela coberta, um ambiente acolhedor com redes espalhadas,
mesas e cadeiras à feição de um bar. No fundo, um fogão à lenha com três
panelões fumegantes, até as tampas com cozido de boi, panelada e
buchada. Ao lado, um açude sangrando com um imenso cardume de tucunarés e
curimatãs ovadas. Ao seu dispor, um estoque infinito da branquinha e
alguidares com alentadas provisões de cajá-umbus, siriguelas, tangerinas
e cajaranas. “E tudo isso num clima de Guaramiranga em julho”, festejou
o ébrio, batendo o centro.
Já devidamente vacinado e
instalado como um paxá numa cheirosa tipoia branca, cismou de consultar a
folhinha pregada na parede. Engraçado, todo dia era feriado, imprensado
ou de fim de semana. Batente, nem pensar, sem culpas ou remorsos
bestas. “Bom demais aqui”, espreguiçava-se, “nada de reclamação de mãe,
esposa ou namorada, nada de liseira, nada de mendigar o litro diário,
nada de policial mandando biriteiro desocupar o ponto. Até os bichos
escrotos do delirium tremens desapareceram. Vou é trazer meus
coleguinhas para cá, um por um, ora se não vou”, planejava, esfregando
as mãos. À noitinha, friozinho bom de serra, os grilos cantando, a lua
surgiu acompanhada de uns anjos camaradas empunhando violões em serestas
mil.
Súbito, um buzinaço em dó-maior destruiu em pedaços o
sonho do pobre embriagado, acordando-o para a dura realidade terrena.
Alojado sob a precária marquise de uma loja de ferragens no Centro, o
aflito bebum assistia ao enfadonho e barulhento espetáculo de carros
emaranhados num engarrafamento dos diabos debaixo de um dilúvio idem.
“Arre égua, onde foi parar o meu paraíso? Quero minha ilusão de volta”,
reclamava ele, cansado de nada achar entre os teréns socados na sacola
encardida. Revoltado, resolveu dormir para esquecer o devaneio. Na
coxia, a correnteza feroz carregava a página solta de Álvaro de Campos:
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte
disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Fonte:O Povo /Coluna Romeu Duarte
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