Romeu Duarte
02/03/2015
Desaparecidos
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Meu senhor, este é meu
filho. Quando saiu de casa tinha 36 anos. Hoje, se estiver vivo, deve
estar com quase 40. Não sei onde ele anda, dele nunca mais tive notícia.
Um vão de escada, a laje de um viaduto, a sombra de um pé-de-pau pode
hoje ser a sua vivenda. Nunca fez nada, era uma esponja, bebia muito.
Quieto, calado, ali na dele, sempre de calção e nu da cintura para cima.
Quando chovia, era uma festa: corria para a primeira bica e se danava a
tomar banho, a cana e a seriguela de uma banda. De repente, parou de
beber, pareceu ter tomado tento. Que nada, desequilibrou-se,
desaprumou-se, sumiu. Foi visto pela última vez pulando o muro lá de
casa, vestindo um paletó surrado do finado pai dele. Quando era errado,
era certo, quando se acertou, lascou-se.
Meu senhor, esta é
minha irmã. Muito magra, muito nervosa, religiosa ao extremo, passava o
dia trancada no quarto. Dizia que homem era a imagem do cão na Terra,
não podia ver um que começava a ter urticárias horríveis. Jurava que a
morada da gente vivia cheia de macho no rastro dela. Debaixo da cama,
atrás do armário, dentro do baú, em todo canto tinha uma cabra disposto a
lhe agarrar e fazer mal. Pobrezinha, nunca vai saber o quanto isso é
bom. Passou a ter surtos psicóticos frequentes, nos quais se machucava
bastante. Uma tarde, ninguém viu como, meteu-se dentro de um pote e de
lá não queria mais sair. Foi preciso quebrar o bicho para tirar ela de
lá. Num descuido meu, deu o pira vestida de mecânico. Seis meses que não
ouço a fala dela. Arre, como dói.
Meu senhor, este é meu pai.
Jamais o vi ao vivo, só em fotografia e esta aqui já está bem sambada.
Fugiu com a minha velha para se casar, prometendo paraísos e delícias.
Arrancharam-se em Pacatuba, no mocó de um parente dele, fez um bucho
nela (eu) e aí a coisa azedou. Começou a dizer que tinha mais o que
fazer, que o casamento lhe tirava a liberdade. Era ver aquele personagem
do Moreira Campos, que vim a conhecer mais tarde na faculdade: “não
tenho paciência de ser preso”. Numa terça-feira de Carnaval, anoiteceu,
mas não amanheceu. Pegou o beco rumo ao oco do mundo. Pouco tempo
depois, nasci, órfão sem sê-lo. Diz o povo que ele mora no Crato, tem
família, comércio, vive bem. Queria encontrá-lo para dizer: “Meu pai, te
amo, canalha!”.
Meu senhor, esta é a minha mãe. Linda ela,
não? Faz mais de três anos que não a vejo. Papai teve vergonha de vir e
me pediu para estar aqui. Ela o abandonou e a nós, uma ruma de menino,
por um sujeito aí, um cara estribado. Soubemos que os dois arribaram
para Cajazeiras, na Paraíba, e lá ela logo tratou de botar um outro belo
par de chifres no safado, indo embora com mais um pé-de-pano. Depois
disso, nem o cheiro. Vaidosa e de gênio difícil, dizia que homem com ela
era ali, debaixo de ordem, peia e galha. Papai, manso, só ouvia, talvez
já sabendo o que lhe aguardava. Gostava do cafuné que ela fazia em mim
na rede para eu dormir. Quando ela se mandou, pensei que fosse meu fim.
Aí, será que ter saudade, sentir falta de quem é ruim, é amar este
alguém?
Não, não tenho a menor ideia de onde, neste momento,
essas pessoas se encontram. Onde estão vocês, desaparecidos, é a
pergunta que não quer calar. O achar essa turma, geralmente andrajosa e
de paradeiro incerto e não sabido, é movido por propósitos diversos.
Ajuste de contas, cobranças, carências, o cipoal dos afetos e ódios,
quem dera conhecer o que se passa nesses corações e mentes aflitos que
enchem a tela da minha TV. Importa também atinar com o que faz um
cristão a se picar da vida que levava. Escapar de um inferno particular?
Ser outro, com novos rosto e corpo? Inventar uma segunda chance para
si, mesmo que provisória? Vingança? Ah, humanidade, como tu dás
trabalho. Lá fora, a chuva alaga a cidade precária e enche açudes.
Fonte:http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2015/03/02/noticiasromeuduarte,3400200/desaparecidos.shtml
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