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O conceito de vitalidade urbana
"O que faz uma boa cidade?"
Kevin Lynch, A boa forma da cidade (1)
Kevin Lynch, A boa forma da cidade (1)
Os
fatores que determinam a afinidade por determinados lugares são tantos
que seria impossível identificar todos. No entanto, alguns autores
apontaram correlações entre aspectos da forma urbana e fenômenos sociais
como a insegurança, a prática de esportes e outras atividades ao ar
livre, o envolvimento com a política local (2). A proporção entre
janelas e muros cegos em uma rua, por exemplo, poderia influenciar na
dinâmica social, econômica e ambiental da mesma rua. Neste sentido, a
administração da cidade deve utilizar critérios de avaliação que definam
o melhor ou pior desempenho, de modo a favorecer a criação de espaços
públicos de boa qualidade. Apesar da dificuldade de avaliar
objetivamente as correlações entre a forma urbana e a apropriação dos
espaços, devido a multiplicidade dos elementos e fatores envolvidos,
alguns estudos, auxiliados por recursos da informática, vêm obtendo bons
resultados na avaliação quantitativa destas correlações (3).
A idéia de vitalidade urbana procura
sintetizar o conjunto de qualidades de um assentamento no qual as
pessoas apreciem estar, geralmente, concentrador de múltiplas atividades
e relações econômica. Jane Jacobs assume uma interpretação de
“vitalidade” voltada para a interação social, a diversidade de usos e a
"qualidade vibrante dos lugares". A autora faz referência a uma
“atmosfera de alegria, companheirismo e bem-estar nas ruas”, quando
descreve o North End, bairro de baixa renda em Boston, como fica representado no trecho:
“Quando visitei o North End
novamente em 1959, fiquei espantada com a mudança. [...] No lugar de
colchões encostados às janelas, havia venezianas e a aparência de tinta
fresca. [...] Misturadas aos prédios residenciais havia uma quantidade
incrível de excelentes mercearias, assim como casas de estofamento,
serralheria, carpintaria, e processamento de alimentos. As ruas tinham
vida com crianças brincando, gente fazendo compras, gente passeando,
gente falando. Não fosse um frio dia de Janeiro, certamente haveria
pessoas sentadas às portas” (4).
Segundo Jacobs,
incentivar a diversidade de usos seria a melhor forma de combater a
“grande praga da monotonia” – resultante do planejamento setorizado e monofuncional
–, promovendo segurança, atratividade e interação entre as pessoas.
Assim, os principais fundamentos da revitalização de áreas urbanas de
baixa vitalidade e integração de franjas e bordas seriam os mesmos:
promoção da diversidade através de um diagnóstico das carências de usos
principais, tamanho das quadras, distribuição etária e tipos de
edifícios (5).
Já Kevin Lynch associa a vitalidade
de um ambiente à sua capacidade de suportar a saúde (inclusive mental) e
o bom funcionamento biológico dos indivíduos, assim como a
sobrevivência da espécie. A noção de que a qualidade do espaço (no
sentido da forma) pode influenciar diretamente a saúde física e mental
das pessoas exige uma definição do que consiste a qualidade desta saúde,
tema que não será aprofundado neste trabalho, limitando-se às
interpretações de saúde e bem estar apontados pelo conjunto de autores
estudados. Lynch sugere cinco “dimensões de performance” para a
avaliação de espaços urbanos, no sentido do melhor atendimento às
necessidades humanas:
a) vitalidade, o grau
no qual a forma do assentamento suporta suas funções vitais,
necessidades biológicas e, sobretudo, garante a sobrevivência da
espécie. Este é um critério antropocêntrico, ainda que se possa admitir
que o ambiente oferece suporte para outras espécies e que o bem estar
humano muitas vezes depende desta relação e da presença de uma
diversidade de espécies animais e vegetais.
b) sentido,
a medida na qual um assentamento pode ser claramente percebido e
mentalmente diferenciado e estruturado no tempo e espaço por seus
residentes. A medida na qual esta estrutura mental se conecta com seus
valores e conceitos – adequação entre o ambiente, as capacidades
sensoriais e mentais da população e sua construção cultural.
c) adequação à escala,
a compatibilidade das formas e capacidades dos espaços, canais e
equipamentos, com o padrão e quantidade de ações que as pessoas
usualmente realizam.
d) acesso, a capacidade
de acessar outras pessoas, atividades, recursos, serviços, informação ou
lugares, incluindo a quantidade e diversidade de elementos que podem
ser acessados.
e) controle, o grau no qual o
uso e o acesso aos espaços e atividades, e a sua criação, reparo,
modificação e administração é controlado por aqueles que usam, trabalham
ou residem no local (6).
As definições apontadas
por Lynch estabelecem parâmetros gerais para interpretação e julgamento
da qualidade dos espaços urbanos do ponto de vista de sua apropriação e
uso. Por outro lado, a complexidade crescente dos assentamentos
contemporâneos, muitas vezes faz emergir necessidades e interesses
contraditórios, assim como interpretações destoantes em relação ao mesmo
espaço. Bernardo Secchi afirma que, em relação à cidade contemporânea,
questiona-se todo conhecimento – dedutivo – sobre o seu funcionamento, o
que a torna resistente à sistematização, codificação e generalização
(7). Secchi identifica, na raiz desta dificuldade, o que ele chama de
“um sistema de múltiplas racionalidades”, que dialogam, se enfrentam e
se complementam no projeto da cidade.
“muitas
vezes interpretada como dispersão caótica de coisas e pessoas, de
práticas e de economias, a cidade contemporânea, nas diversas escalas do
espaço físico, social, econômico, institucional, político, cultural,
caracteriza-se por um mesmo grau de fragmentação, produto de
racionalidades múltiplas e legítimas, mas muitas vezes sobrepostas umas
às outras, com limites invisíveis e difíceis de superar” (8).
Ainda
segundo Secchi, grande parte da heterogeneidade das cidades de hoje
teve origem no processo de identificação, separação e distanciamento,
que teria sua raiz na emergência de um “sistema de intolerâncias”,
ligado tanto à exigências higienistas e infraestruturais por parte da
sociedade e da economia modernas, quanto à necessidade de maior
privacidade individual e familiar. No início do século 20, esse
paradigma consolidou na cidade o que Secchi chamou de um sistema de
“valores posicionais”, indicando que o valor de um bem ou de um serviço
pode depender não só de sua raridade ou de seu custo de produção, mas
também de sua posição na sociedade ou na cidade. A cidade contemporânea
poderia ser representada pela fragmentação, heterogeneidade e dispersão,
devido à sua natureza instável, à velocidade dos acontecimentos e à
mistura de interesses, o que é a causa de sua resistentência à
simplificações. A dispersão e a fragmentação foram representados por
Secchi como respostas parciais a um fenômeno metaforicamente traduzido
como o enfrentado pelos porcos-espinho de Schopenhauer (9), ou seja, o
da busca de uma distância ótima em um novo sistema de solidariedades e
tolerâncias, de compatibilidades físicas, sociais e simbólicas.
A
visão da cidade grande como espaço de desordem social, degeneração
moral e criminalidade aparece também como parte do sentido metafórico
que se atribui à urbanidade – expresso desde a antiga Babilônia até a
Los Angeles contemporânea. Este aspecto do urbano foi apresentado por
Mike Davis como uma conjugação de elementos utópicos e distópicos,
geralmente caracterizados pela segregação espacial, produção de cenários
diversificados e repressão policial (o termo “polícia” vem do grego polis,
que significa “cidade”) (10). A experiência urbana expôe o melhor e o
pior das capacidades humanas, a maior concentração de riquezas e o maior
número de pobres. Em cidades como o Rio de Janeiro, onde a desigualdade
econômica ainda constitui um "abismo social" (11), com frequencia
emergem conflitos pelo uso do espaço urbano. A ação do Estado como
regulador e legislador garante, entre outras coisas, a pregorrativa do
uso da violência para o cumprimento das determinações legais.
A
produção do espaço urbano decorre de processos variados e, muitas
vezes, contraditórios. A rejeição de um modelo único de “boa cidade”, o
reconhecimento dos diferentes olhares e da necessidade de um espaço
urbano diversificado conduzem à maior flexibilização na produção deste
espaço. Para Rodrigo Lopes a inserção das cidades em um mercado global,
mediante a adoção de planos estratégicos, formulados por atores variados
de dentro e de fora da cidade, seria a melhor resposta à suposta
ineficiência do planejamento centralizador e burocrático (12). Segundo
esta visão, a parceria dos governos com o capital privado cria
oportunidades para a cidade, tanto quanto oportunidades de lucro para os
investidores; o desenvolvimento em termos econômicos (atração de
capitais externos, promoção da imagem da cidade no cenário
internacional, instalação de novas indústrias, por exemplo),
constituiria uma condição para a melhoria das condições de vida na
cidade. Os Planos Estratégicos se popularizaram a partir da experiência
de Barcelona nas Olimpíadas de 1994, quando a cidade passou por diversas
transformações em sua forma, resultando suposta melhoria em suas
funções econômicas e sociais.
Já David Harvey (13)
questiona a submissão que o Estado parece assumir diante dos interesses
de grandes empresas, afirmando que este modelo de desenvolvimento
contribui para o aumento das desigualdades e a fragmentação do tecido
urbano. O exemplo do Rio de Janeiro parece assumir diversos aspectos e
tendências deste processo, que Harvey identifica como “empresariamento
urbano”. Marcado por um discurso desenvolvimentista baseado na intensa
divulgação da cidade como marca. O Rio vem sendo promovido
sistematicamente como espaço de oportunidades para investimentos.
Diversas intervenções do poder público, com intensa participação de
setores privados, reforçam este posicionamento. A expectativa da Copa do
Mundo e das Olimpíadas legitima grandes transformações, que pretendem
consolidar a imagem do Rio de Janeiro como metrópole global. Entretanto,
uma observação cuidadosa de alguns fatos referentes à distribuição dos
benefícios (e potenciais impactos negativos) destas transformações,
revela assimetrias sociais e ambientais, que se projetam no espaço
urbano.
Sustentabilidade e equidade
"As
economias que ignoram considerações morais e sentimentais são como
bonecos de cera que, mesmo tendo aparência de vida, ainda carecemde vida
real"
Mahatma Gandhi, Young India (14)
Mahatma Gandhi, Young India (14)
Porque
combater desigualdades econômicas, sociais e ambientais? Ou ainda, em
que consistem estas desigualdades? A abordagem da questão emergiu do
debate sobre a justiça ou injustiça da desigualdade. Em um conjunto de
palestras de referencia em 1979, Amartya Sen propôs que se pensasse
sobre a igualdade em termos de capacidades. A igualdade não é necessária
nem suficiente para a equidade. Diferentes capacidades e preferencias
individuais conduzem a diferentes resultados, mesmo com oportunidades e
acesso a recursos idênticos. Apesar de diferenças conceituais, a
iniquidade e a desigualdade de rendimentos estão estreitamente ligadas
na pratica – porque as desigualdades de rendimentos são em larga medida o
resultado de um acesso desigual às capacidades. Buscando superar os
problemas originados por um desenvolvimento unicamente orientado para a
expansão econômica, Amartya K. Sen (15) sugere uma reaproximação entre a
ética, da economia e da política.
As preocupações
com a sustentabilidade e a equidade são semelhantes num sentido
fundamental: ambas se relacionam com a justiça distributiva. Os
processos não equitativos são injustos, tanto entre grupos como entre
gerações. As desigualdades são especialmente injustas quando
desfavorecem sistematicamente grupos específicos de pessoas, quer devido
a gênero, etnia, origem social ou modo de vida. Enquanto a
sustentabilidade volta-se para o futuro, com a justiça intergerações e a
possibilidade de manutenção de um determinado sistema, a equidade se
volta para os problemas dos mais pobres e para as desigualdades do
presente. Uma das importâncias sociais da sustentabilidade e da equidade
enquanto condições desejáveis para a construção de cidades é sua
capacidade de reintegrar indivíduos e comunidades, através da inclusão e
do trabalho digno.
Uma outra concepção, a "Teoria
da Equidade", formulada por John Stacy Adams (16), refere-se à motivação
de um indivíduo a partir do reconhecimento de suas contribuições para
determinada coletividade (seja uma empresa, bairro, cidade ou nação). O
autor parte do princípio de que a motivação depende do equilíbrio entre o
que a pessoa oferece à organização através do sistema produtivo (o seu
desempenho) e aquilo que recebe através do sistema retributivo (a sua
compensação). Assim, uma sociedade sustentável seria aquela na qual
todos os indivíduos sentem-se devidamente recompensados por suas
atividades produtivas. Estas atividades podem ou não ser realizadas
dentro do mercado.
Nos debates sobre o
desenvolvimento humano fomentados pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), questões de equidade dizem respeito a
“problemas de imparcialidade e justiça social e de um maior acesso a
melhor qualidade de vida” (17). Desde os anos 1970, a atenção dada à
problemática ambiental contribuíu para uma ampla reconceituação do
desenvolvimento, em termos de sua relação com a base material de onde
extrai recursos, as condições de vida da sociedade e o modo de
disposição dos resíduos. Esta reconceituação conduziu à formulação dos
termos "ecodesenvolvimento" (18) e, porteriormente, "desenvolvimento
sustentável" (19).
Em oposição ao desenvolvimento
considerado "excludente" (do mercado de consumo) e "concentrador" (de
renda e riqueza), marcado pela segmentação dos mercados de trabalho,
elevada informalidade, acesso precário à proteção social e fraca
participação na vida política, Ignacy Sachs propõe uma modalidade de
desenvolvimento "includente", que teria como pontos fundamentais:
a) a Democracia, garantia de transparência e responsabilização pelas ações individuais, coletivas e institucionais.
b) o acesso, em igualdade de condições, a Programas de Assistência
para deficientes, mães e filhos, idosos, enfim, voltados para a
compensação das desigualdades naturais ou físicas. Além disso, Políticas
sociais compensatórias financiadas pela redistribuição de renda
poderiam incluir subsídios ao desemprego ou sub-emprego.
c) a igualdade de oportunidades no acesso aos Serviços Públicos, tais como educação, proteção à saúde e moradia (20).
A Educação
é considerada essencial para o desenvolvimento, na medida em que
contribúi para o despertar cultural, a conscientização, a compreensão
dos direitos humanos, aumentando a adaptabilidade e o sentido de
autonomia, assim como a auto-confiança e a auto-estima. Apesar da
importância dos serviços de saúde, o objetivo de uma política
includente deve ser a melhoria da saúde das pessoas, o que depende,
entre outras coisas, de alimentação adequada, acesso à água limpa e
esgotamento sanitário, condições adequadas de moradia e trabalho, de boa
educação e medidas preventivas, como vacinação. A inclusão ou não da Moradia entre
os Serviços Públicos movimenta um debate ainda sem solução. A história
dos conjuntos habitacionais promovidos em larga escala pelo poder
público revelou resultados pouco satisfatórios (a conversão de certos
conjuntos em favelas, por exemplo), no entanto, a provisão de moradia
decente para todos constitúi um enorme desafio para um desenvolvimento
que se pretenda includente e sustentável.
Sem
adentrar o campo de debate sobre os limites entre as esferas pública e
privada, assim como a definição dos bens públicos, é importante fazer
uma distinção entre as políticas conpensatórias (que poderiam ser
financiadas pela redistribuição de renda mediante o sistema fiscal) e as
políticas de emprego, que mudam a distribuição de renda primária (21).
Embora ambas sejam necessárias, segundo Sachs, as primeiras são de
natureza puramente social e requerem despesas contínuas, enquanto as
segundas, mediante a criação de oportunidades de trabalho decente, geram
renda e proporcionam uma solução duradoura ao problema do desemprego.
Medidas
de equidade urbana se relacionam à distribuição, no território, de
equipamentos e redes de infra-estrutura, possibilitando melhor qualidade
de vida para maior número de habitantes da cidade. Entretanto, a
complexidade das relações entre as periferias e as centralidades locais
e, destas com os grandes núcleos metropolitanos dificulta a averiguação
deste atributo. As divisões administrativas nem sempre refletem a
diversidade de apropriações e grupos sociais que dividem (e, muitas
vezes, disputam) o uso do espaço.
Diversos
conflitos emergem da desigual distribuição dos benefícios urbanos e da
difícil condição da propriedade da terra enquanto mercadoria. No caso do
Rio de Janeiro, as remoções e demolições decorrentes dos projetos da
Cidade Olímpica são um bom exemplo destas tensões, a partir do qual é
possível avaliar possíveis beneficiados com as transformações, assim
como aqueles prejudicados pelas mesmas. Outros conflitos comuns aos
grandes centros dizem respeito ao uso da água (casos de racionamento e
falta d'água), ao usufruto da paisagem (construções que obstruem a vista
ou reduzem a privacidade), ao acesso aos serviços públicos (vagas em
hospitais e escolas, por exemplo), à locomoção e acessibilidade. A
natureza participa destes conflitos tanto no sentido dos bens e serviços
por ela proporcionados quanto do respeito à existência de outras
espécies e ecossistemas. Estes dois aspectos são colocados em risco com a
expansão urbana desenfreada, o que reforça importância da consideração
pela ecologia urbana nos debates sobre sustentabilidade e equidade.
Conflitos distributivos e justiça ambiental urbana
A
avaliação dos custos de construção e manutenção dos assentamentos
humanos e seus artigos de consumo deveria levar em consideração
interdependências (ou “externalidades”) locais, regionais e até
internacionais para apontar com maior precisão os custos monetários e
ecológicos destes sistemas. No início do século 20, o biólogo e
planejador urbano Patrick Geddes pretendeu promover uma visão biofísica
da economia, como um subsistema incorporado a um sistema mais amplo de
relações entre a ecologia, a geografia e o urbanismo. Em tempos de
globalização, quando se distanciam as relações de causa e efeito entre a
produção e o consumo de bens, muitas vezes, como evidencia Alier:
“os
cidadãos ricos buscam satisfazer suas necessidades ou desejos por
intermédio de novas formas de consumo que são, em si mesmas, altamente
intensivas na utilização de recursos. Esse é o caso, por exemplo, da
moda de degustar camarões importados dos países tropicais ao custo da
destruição dos mangues, ou da aquisição de ouro ou diamantes” (22).
Apesar
da crescente reivindicação por medidas compensatórias para impactos
ambientais e, secundariamente, para os sociais, deve-se considerar os
limites da valoração de determinadas transformações ocasionadas pela
exploração de recursos humanos e naturais. Os gregos faziam distinção
entre os termos oikonomia (arte do aprovisionamento material da casa familiar) e crematística
(estudo da formação dos preços de mercado, para ganhar dinheiro) (23). O
primeiro representava a riqueza verdadeira e os valores de uso, o
segundo representava os valores de troca e algo próximo do que hoje
seria entendido como oferta e procura. Esta distinção parece hoje
irrelevante porque o aprovisionamento material se dá, predominantemente,
através de transações comerciais. Ainda assim, muitas atividades são
realizadas no interior do núcleo familiar e muitos serviços da natureza
ocorrem fora do mercado – basta contabilizar as horas dedicadas às
atividades domésticas ou a pescaria amadora nas cidades costeiras.
As
externalidades, por sua vez, são custos não contabilizados de uma
determinada operação, gerando consequencias para terceiros. Segundo
Luciana Togeiro, "as externalidades ocorrem porque o bem em questão
(meio ambiente/recursos naturais) não é propriedade de ninguém, ou
melhor, é de domínio universal” (24). Este é o caso do lançamento de
afluentes industriais em corpos d'água, ou da destruição de certos
ecossistemas para a produção pecuária extensiva. Nestes dois casos, o
exercíco da propriedade sobre os corpos d'água e a biodiversidade é
praticado, ainda que seus custos não sejam assimilados pelas industrias e
proprietários de terras. Entretanto, a consequente escassez da pesca em
comunidades ribeirinhas, assim como a perda de espécies animais e
vegetais pode ser considerada externalidade do processo, gerando
prejuízos econômicos e imateriais difíceis de contabilizar. A proposta
do economista inglês Arthur Cecil Pigou, ainda em 1920, sugeriu o
estabelecimento de taxas e impostos para neutralizar os danos dos custos
externos (ou externalidades), entre eles, os danos ambientais de
variadas origens – princípio do poluidor pagador.
Alier
ressalta a importância das questões distributivas social e
ecologicamente, para a decisão produtiva de qualquer atividade econômica
que seja (25). Em termos econômicos, existem fortes interesses de que
as externalidades permaneçam como tal – fora da contabilidade dos
resultados e do balanço da empresa. As decisões seriam diferentes caso
tais passivos ambientais e sociais fossem incorporados na sua conta (na
forma de algum valor econômico). Além disso, os aspectos distributivos
ambientais não recaem unicamente sobre os produtores, podendo
influenciar uma área indeterminada (no caso de agrotóxicos, por exemplo,
ou da poluição ocasionada pelos automóveis). Isto possui, ainda segundo
o autor, influência nas formas assumidas pelos conflitos ecológicos,
que podem variar de acordo com o modo pelo qual se da a mobilização
popular, os atores envolvidos e os métodos de valoração utilizados (26).
Existe
uma hipótese de que a economia passaria por uma transição para uma fase
"pós-materialista", centrada nos serviços e no turismo, reduzindo as
indústrias nos países mais desenvolvidos e, assim, reduzindo impactos
sobre o meio ambiente. Isto, no entanto, desconsidera que o dinheiro
obtido nesta economia irá destinar-se à aquisição de bens cuja produção
requer utilização de recursos naturais e energia. No Rio de Janeiro, por
exemplo, a utilização residencial de energia elétrica aumentou mais de
30% entre 2002 e 2010. a geração per capta de resíduos também
aumentou de 240 para 270 kg por ano, segundo dados do Institudo Pereira
Passos e da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro (27). Isto contribúi
para que hajam progressivamente mais conflitos locais e globais
relacionados com a partilha geográfica e social da contaminação
(inclusive decorrente da falta de saneamento, erosão, congestionamento,
etc.) e sobre o acesso aos recursos naturais (inclusive as paisagens e
outros bens de difícil mensuração e valoração).
Para
Swyngedouw e Heynen, a questão da sustentabilidade urbana trata,
essencialmente, da distribuição das amenidades ambientais, tanto quanto
dos riscos (28). Embora a noção de risco ambiental incorpore certa
imprevisibilidade na distribuição de seus efeitos, é possível
estabelecer correlações entre o padrão sócio-econômico dos assentamentos
e a exposição aos efeitos negativos da urbanização e da exploração dos
recursos naturais. Isto porque as atividades que causam maior impacto
negativo (aterros sanitários, indústrias químicas, plantações que
utilizam agrotóxicos) tendem a se instalar em áreas desvalorizadas do
território. Da mesma forma, muitas aglomerações irregulares não contam
com saneamento básico, o que multiplica riscos ambientais. Esta
distribuição assimétrica de riscos e amenidades ambientais também parece
responder ao que Bernardo Secchi chamou de "valores posicionais".
São
inúmeras as exposições dos mais pobres aos efeitos nocivos do
desenvolvimento sobre o ambiente urbano, desde o tempo perdido no
trânsito em transportes coletivos, até o risco de deslizamento da casa,
construída em encosta; o risco de ser despejado do terreno, do qual não
possui título de propriedade; risco de doenças decorrentes do saneamento
inadequado; risco de ficar desempregado, de não poder sustentar a
família. Percebe-se que a distribuição desigual da propriedade urbana,
dos equipamentos de uso público, dos serviços de infra-estrutura e da
renda levam à produção de espaços de maior fragilidade ambiental e
social, fragmentados em relação à cidade, nos quais mais se percebe os
fatores de insustentabilidade.
No Rio de Janeiro, se
observa, por outro lado, uma convergência de recursos públicos e
privados, na forma de grandes transformações na infra-estrutura e
acelerada dinâmica imobiliária, promovendo a remodelação de antigos
bairros e a expansão dos limites (e da importância econômica) de outros.
Neste processo, além das mudanças na paisagem e da incorporação de
espaços naturais, também são observados conflitos de interesse quanto ao
uso dos espaços urbanos - o que se manifesta nas remoções (nem sempre
pacificas) promovidas pelo poder público, em ações contrárias às
mudanças (a ocupação do Museu do Índio, por exemplo) e na política de
ocupação armada de favelas.
A popularização dos
conceitos de "sustentabilidade" e "desenvolvimento sustentável" parece
decorrer da imprecisão destes termos. Se as cidades atuais revelam-se
insustentáveis, torna-se necessário estabelecer critérios que definam
uma cidade sustentável, segundo as dimensões social, econômica,
ambiental, territorial e política. Assim, a produção de indicadores
torna-se uma importante ferramenta do planejamento urbano, inclusive,
tirando grande proveito de outros instrumentos contemporâneos, como a internet e softwares de geoprocessamento.
Apesar
do relativo avanço na produção de estudos e interpretações sobre a
(in)sustentabilidae das cidades, a definição dos objetivos e, sobretudo,
das etapas de uma "transição para a sustentabilidade" (29) ainda são
pouco claros ou, quando definidos, muitas vezes, não são aplicados. Além
disso, são frequentes os enfrentamentos entre a proteção do meio
ambiente e os recursos naturais, a qualidade de vida urbana e a
produtividade da economia. Estes enfrentamentos tomam forma em conflitos
pelo uso do solo e demais recursos urbanos, que podem ser bem
definidos, como a resistência às remoções no Rio, ou difusos, como
congestionamentos na hora do rush e doenças endêmicas provocadas pela poluição.
Pode-se
ponderar que a experiência urbana é conflituosa em si, posto que
envolve o tolhimento de liberdades em benefício da coexistência
organizada. No entanto, a extrema desigualdade de condições sociais e
territoriais observada nas grandes cidades brasileiras leva a crer que
estes enfrentamentos não ocorrem em igualdade de condições. Os mais
pobres, via de regra, são mais expostos aos riscos e impactos ambientais
decorrentes da insustentabilidade urbana, ainda que pouco contribuam
para os fatores de maior degradação. Isto ocorre porque seu poder de
escolha (mobilidade e consumo de bens e serviços) é limitado pela renda,
o que também acarreta fraco poder de negociação diante dos conflitos
territoriais e fraca representatividade política.
notas
1
LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. Lisboa, Edições 70, 1981. p. 4.
LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. Lisboa, Edições 70, 1981. p. 4.
2
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução de Carlos Rocha. São Paulo, Martins Fontes, 1961; ROSSI, Aldo (1966). A arquitetura da cidade. 2ª edição, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2001; LYNCH, Kevin (1960). A imagem da cidade. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997; LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade (op. cit.).
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução de Carlos Rocha. São Paulo, Martins Fontes, 1961; ROSSI, Aldo (1966). A arquitetura da cidade. 2ª edição, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2001; LYNCH, Kevin (1960). A imagem da cidade. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997; LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade (op. cit.).
3
Por exemplo, o simpósio temático coordenado por Vinícius Neto, apresentado no II Enanparq, intitulado “Forma e vitalidade urbana: Impactos de padrões de urbanização e arquitetura sobre as dinâmicas da cidade”, no qual foi discutida a relação entre a forma urbana, suas qualidades ambientais e vitalidade, a partir de metodologias predominantemente quantitativas.
Por exemplo, o simpósio temático coordenado por Vinícius Neto, apresentado no II Enanparq, intitulado “Forma e vitalidade urbana: Impactos de padrões de urbanização e arquitetura sobre as dinâmicas da cidade”, no qual foi discutida a relação entre a forma urbana, suas qualidades ambientais e vitalidade, a partir de metodologias predominantemente quantitativas.
4
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 8.
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 8.
5
Idem, ibidem, p. 437.
Idem, ibidem, p. 437.
6
LYNCH, Kevin. Op. cit., p. 118.
LYNCH, Kevin. Op. cit., p. 118.
7
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 2006.
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 2006.
8
Idem, ibidem, p. 56.
Idem, ibidem, p. 56.
9
“Pode ser que os homens estejam ficando como os porcos-espinho de Schopenhauer: quando o inverno é frio os porcos-espinho, procurando um pouco de calor, comprimem-se entre si, mas os espinhos de um espetam a carne do outro. Os porcos-espinho, então, afastam-se e sentem frio. [...] ao fim, eles encontram uma distância adequada, na qual não sentem nem muito frio, nem muita dor. A cidade contemporânea, cidade ainda instável, talvez esteja à procura da distancia adequada”. SECCHI, Bernardo. Op. cit., p. 60.
“Pode ser que os homens estejam ficando como os porcos-espinho de Schopenhauer: quando o inverno é frio os porcos-espinho, procurando um pouco de calor, comprimem-se entre si, mas os espinhos de um espetam a carne do outro. Os porcos-espinho, então, afastam-se e sentem frio. [...] ao fim, eles encontram uma distância adequada, na qual não sentem nem muito frio, nem muita dor. A cidade contemporânea, cidade ainda instável, talvez esteja à procura da distancia adequada”. SECCHI, Bernardo. Op. cit., p. 60.
10
DAVIS, Mike, Cidade de quartzo, escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo, Página Aberta, 1993, p. 17-89.
DAVIS, Mike, Cidade de quartzo, escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo, Página Aberta, 1993, p. 17-89.
11
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classessociais. Petrópolis, Vozes, 2002.
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classessociais. Petrópolis, Vozes, 2002.
12
LOPES, Rodrigo, A cidade intencional – o planejamento estratégico de cidades. Rio de Janeiro, Muad, 1998.
LOPES, Rodrigo, A cidade intencional – o planejamento estratégico de cidades. Rio de Janeiro, Muad, 1998.
13
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, São Paulo, n. 39, NERU, 1996, p. 48-64.
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, São Paulo, n. 39, NERU, 1996, p. 48-64.
14
GANDHI, Mahatma. Young India. 1923.
GANDHI, Mahatma. Young India. 1923.
15
SEN, Amartya (1987). Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
SEN, Amartya (1987). Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
16
ADAMS, John Stacy. Teoria da equidade: para uma teoria geral da interação social. Nova York, Academic Press, 1976.
ADAMS, John Stacy. Teoria da equidade: para uma teoria geral da interação social. Nova York, Academic Press, 1976.
17
PNUD – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Relatório do Desenvolvimento Humano 2011. Sustentabilidade e Equidade. Um futuro melhor para todos. Nova York, 2011, p. 4.
PNUD – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Relatório do Desenvolvimento Humano 2011. Sustentabilidade e Equidade. Um futuro melhor para todos. Nova York, 2011, p. 4.
18
SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. Tradução E. Araujo. São Paulo, Vértice, 1981, p. 14.
SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. Tradução E. Araujo. São Paulo, Vértice, 1981, p. 14.
19
WCED (World Commission on Environment and Development). Our Common Future. Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 23.
WCED (World Commission on Environment and Development). Our Common Future. Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 23.
20
SACHS, Ignacy, Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, p. 39.
SACHS, Ignacy, Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, p. 39.
21
Idem, ibidem, p. 42.
Idem, ibidem, p. 42.
22
ALIER, Joan M. Ecologismo dos pobres. Conflitos ambientais e linguagens de valoração. Tradução Maurício Waldman. São Paulo, Contexto, 2011, p. 44.
ALIER, Joan M. Ecologismo dos pobres. Conflitos ambientais e linguagens de valoração. Tradução Maurício Waldman. São Paulo, Contexto, 2011, p. 44.
23
Esta distinção aparece na Política de Aristóteles.
Esta distinção aparece na Política de Aristóteles.
24
TOGEIRO de A., Luciana. Política ambiental: uma análise econômica. São Paulo, Unesp, 1998, p. 28.
TOGEIRO de A., Luciana. Política ambiental: uma análise econômica. São Paulo, Unesp, 1998, p. 28.
25
ALIER, Joan M. Op. cit., p. 51.
ALIER, Joan M. Op. cit., p. 51.
26
Idem, ibidem, p. 52.
Idem, ibidem, p. 52.
27
Armazém de Dados. Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos <www.armazemdedados.rio.rj.gov.br> Acessado em Janeiro de 2013.
Armazém de Dados. Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos <www.armazemdedados.rio.rj.gov.br> Acessado em Janeiro de 2013.
28
SWYNGEDOUW, Erik; HEYNEN, Nikolas. Urban Political Ecology. Justice and the Politics of Scale. Antipode, vol. 35, n, 5, 2003, p. 899-918.
SWYNGEDOUW, Erik; HEYNEN, Nikolas. Urban Political Ecology. Justice and the Politics of Scale. Antipode, vol. 35, n, 5, 2003, p. 899-918.
29
Como referiu-se o documento de criação da Macrozona de Especial Interesse Econômico MACROZEE da Amazônia Legal. Ver: COMISSÃO COORDENADORA DO ZEE DO TERRITÓRIO NACIONAL. Estratégias de transição para a sustentabilidade. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, s/d.<www.mma.gov.br/estruturas/ascom_boletins/_arquivos/24_03_macrozee_08_83.pdf>. Acessado em Janeiro de 2013.
Como referiu-se o documento de criação da Macrozona de Especial Interesse Econômico MACROZEE da Amazônia Legal. Ver: COMISSÃO COORDENADORA DO ZEE DO TERRITÓRIO NACIONAL. Estratégias de transição para a sustentabilidade. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, s/d.<www.mma.gov.br/estruturas/ascom_boletins/_arquivos/24_03_macrozee_08_83.pdf>. Acessado em Janeiro de 2013.
sobre o autor
Rafael
Koury, graduado em Arquitetura e Urbanismo (2010), mestre em
Planejamento Urbano, Espaço Construído, Sustentabilidade e Ambiente pela
Universidade Federal Fluminense e professor de Projeto Arquitetônico na
Universidade Salgado de Oliveira.
Fonte > Vitruvius
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