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terça-feira, 19 de maio de 2015

João, Juanita

Sentado na desengonçada cadeira de rodas doada pela caridade pública, as pernas amputadas na altura dos joelhos (a maldita diabetes), batom nos lábios, brincos dourados nas orelhas de abano, bijuterias espalhadas pelo que lhe restara do outrora corpo sensual, a barba por fazer, ela somente aguardava. Ocupando parte da estreita calçada defronte ao pardieiro que compartilhava com seus iguais, olhava calado a Praça Clóvis Bevilácqua, completamente deserta àquela hora. Dia das Mães, quatro da tarde, Rua General Sampaio, do lado da sombra e da solidão. A brisa boa de maio balançava os oitizeiros, até brincava com o pano da saia curta que usava, mas não lhe abrandava o coração partido. “Por que será que ele não vem?”, perguntava ao relógio mudo.

Os ônibus vazios indo ao Centro idem e as ambulâncias, com suas sirenes e enfermos plenos de urgência em busca do IJF, eram seus companheiros naquele vespertino suplício. “Ah, se pelo menos a faculdade, o colégio, estivessem funcionando, seria mais animado”, lamentava ela, “tanto menino gato, tanto rapagão bonito, cada lapa de homem”, regalava-se, não olvidando das tentações da carne em sua particular ética amorosa. Mas seu peito andava frio, ansiando pela chegada daquele que nunca vinha, que nunca dava as caras, que parecia ter vergonha, que não cuidava em se importar. “Sofrência de baitola velho é o ó, querido”, falou-lhe subitamente o colega, cozinheiro dos bons, com quem dividia o humilde quartinho dos fundos. Vida, um drama banal.

O passado, já longínquo, surgiu num clarão aos seus olhos. Vindo do interior com uma mão na frente e outra atrás (esta, às vezes, recolhida), e abandonado pela família, que não aceitava viado em seu seio, veio bater à porta da Loura na aurora dos anos de 1950. Sem opção, arranjou-se como factótum em uma pensão alegre na Major Facundo. Lá, além de se tornar mestra em seu sexual métier, aprendeu as artes da dança de cabaré, transmutando-se de João em Juanita, La Rumbera. Certa feita, uma das fuampas da casa, prenha de um cabo da Base, deu à luz um menino. Sem condições de mantê-lo, devido ao vuco-vuco do lupanar e à incerteza do seu passadio, deu o rebento à Juanita para que ele o criasse. “Serei a guardiã do anjo”, firmou o dançarino, comovida.

Ah, quantas vezes estreitara aquele bebê em seus braços, aplacara sua sede e fome imensas com o escasso de comer que lhe cabia, abafara seu choro com o melhor dos carinhos, velara seu sono abdicando do próprio. Esperto, com a morte da madame, passou a dirigir o bordel, tendo mais condições de sustentar a cria. Bancou o garoto do jardim ao cursinho. “Que fofo ele de recruta no Exército, ombro a ombro com aqueles suados pedaços de mau caminho”, recordava, a foto rota na carteira. A formatura do rapaz em Engenharia teve parte da festa comemorada no prostíbulo entre as raparigas, os cafetões e os habitués. Ali o formando já evidenciava seu asco àquela situação. Com o tempo, namorou, casou e foi sumindo aos poucos, com esparsas visitas secas.

O bimbalhar dos sinos da Igreja do Carmo trouxe a bicha anciã de volta à dura realidade, justo na hora em que o carrão preto estacionou no meio-fio. “Oi, mãe, parabéns pelo seu dia, uma flor para uma flor”, saudou-lhe o danado, sem sair da viatura, estendendo-lhe uma rosa raquítica, dessas que se compra nos sinais. “Não sou sua mãe, apenas tomei conta de você. Cadê sua mulher, seus filhos?”, inquiriu-lhe. “Não quiseram vir. Aliás, não deixei que viessem, aqui não é lugar para eles. Pegue logo seu presente”, respondeu-lhe, o vidro elétrico subindo, escondendo-lhe o semblante. Sons, palavras, são navalhas. Ave, Dumas: “Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão”. Na escuridão, o idoso maricas aleijado, mimo rejeitado no colo: “Filho da puta”.

Fonte: OPovo | Coluna Romeu Duarte

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