Sentado na desengonçada cadeira de rodas doada pela caridade pública,
as pernas amputadas na altura dos joelhos (a maldita diabetes), batom
nos lábios, brincos dourados nas orelhas de abano, bijuterias espalhadas
pelo que lhe restara do outrora corpo sensual, a barba por fazer, ela
somente aguardava. Ocupando parte da estreita calçada defronte ao
pardieiro que compartilhava com seus iguais, olhava calado a Praça
Clóvis Bevilácqua, completamente deserta àquela hora. Dia das Mães,
quatro da tarde, Rua General Sampaio, do lado da sombra e da solidão. A
brisa boa de maio balançava os oitizeiros, até brincava com o pano da
saia curta que usava, mas não lhe abrandava o coração partido. “Por que
será que ele não vem?”, perguntava ao relógio mudo.
Os
ônibus vazios indo ao Centro idem e as ambulâncias, com suas sirenes e
enfermos plenos de urgência em busca do IJF, eram seus companheiros
naquele vespertino suplício. “Ah, se pelo menos a faculdade, o colégio,
estivessem funcionando, seria mais animado”, lamentava ela, “tanto
menino gato, tanto rapagão bonito, cada lapa de homem”, regalava-se, não
olvidando das tentações da carne em sua particular ética amorosa. Mas
seu peito andava frio, ansiando pela chegada daquele que nunca vinha,
que nunca dava as caras, que parecia ter vergonha, que não cuidava em se
importar. “Sofrência de baitola velho é o ó, querido”, falou-lhe
subitamente o colega, cozinheiro dos bons, com quem dividia o humilde
quartinho dos fundos. Vida, um drama banal.
O passado, já
longínquo, surgiu num clarão aos seus olhos. Vindo do interior com uma
mão na frente e outra atrás (esta, às vezes, recolhida), e abandonado
pela família, que não aceitava viado em seu seio, veio bater à porta da
Loura na aurora dos anos de 1950. Sem opção, arranjou-se como factótum
em uma pensão alegre na Major Facundo. Lá, além de se tornar mestra em
seu sexual métier, aprendeu as artes da dança de cabaré, transmutando-se
de João em Juanita, La Rumbera. Certa feita, uma das fuampas da casa,
prenha de um cabo da Base, deu à luz um menino. Sem condições de
mantê-lo, devido ao vuco-vuco do lupanar e à incerteza do seu passadio,
deu o rebento à Juanita para que ele o criasse. “Serei a guardiã do
anjo”, firmou o dançarino, comovida.
Ah, quantas vezes
estreitara aquele bebê em seus braços, aplacara sua sede e fome imensas
com o escasso de comer que lhe cabia, abafara seu choro com o melhor dos
carinhos, velara seu sono abdicando do próprio. Esperto, com a morte da
madame, passou a dirigir o bordel, tendo mais condições de sustentar a
cria. Bancou o garoto do jardim ao cursinho. “Que fofo ele de recruta no
Exército, ombro a ombro com aqueles suados pedaços de mau caminho”,
recordava, a foto rota na carteira. A formatura do rapaz em Engenharia
teve parte da festa comemorada no prostíbulo entre as raparigas, os
cafetões e os habitués. Ali o formando já evidenciava seu asco àquela
situação. Com o tempo, namorou, casou e foi sumindo aos poucos, com
esparsas visitas secas.
O bimbalhar dos sinos da Igreja do
Carmo trouxe a bicha anciã de volta à dura realidade, justo na hora em
que o carrão preto estacionou no meio-fio. “Oi, mãe, parabéns pelo seu
dia, uma flor para uma flor”, saudou-lhe o danado, sem sair da viatura,
estendendo-lhe uma rosa raquítica, dessas que se compra nos sinais. “Não
sou sua mãe, apenas tomei conta de você. Cadê sua mulher, seus
filhos?”, inquiriu-lhe. “Não quiseram vir. Aliás, não deixei que
viessem, aqui não é lugar para eles. Pegue logo seu presente”,
respondeu-lhe, o vidro elétrico subindo, escondendo-lhe o semblante.
Sons, palavras, são navalhas. Ave, Dumas: “Há favores tão grandes que só
podem ser pagos com a ingratidão”. Na escuridão, o idoso maricas
aleijado, mimo rejeitado no colo: “Filho da puta”.
Fonte: OPovo | Coluna Romeu Duarte
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