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segunda-feira, 29 de junho de 2015

O ovo da serpente

Eu bem os conheço, meu caro, minha cara. O ar comedido que rapidamente se transforma numa máscara colérica, expressão de quem pratica uma honestidade seletiva. A melhor tradução do seu moralismo capenga é a lata de cerveja jogada na rua pela janela do carrão preto, que logo mais será estacionado, sem cerimônia, sobre a calçada. A expressão de asco reservada àqueles que já se acostumaram a ser tratados como invisíveis. A consideração da existência dos pobres como algo absurdo, uma proliferação de males sem fim, própria dos ratos e demais pestes. O sujeito que nasceu, cresceu, reproduziu-se e morrerá ruim é o germe do país que não presta e não tem jeito. O inato do ser, ponto. Morra de fome ou coma caviar, a pessoa é. Vai encarar?

Eu bem os conheço, meu caro, minha cara. Inimigo bom é inimigo morto. Aliás, inimigo porque diferente de mim, não pertence ao meu grupo de contatos na rede social, ao meu partido, ao meu clube, à minha torcida organizada. Aquele filósofo é quem tinha razão: o inferno é mesmo o outro, a alteridade é intolerável. No máximo, cada qual no seu quadrado e bem longe de mim, de minha muralha, da minha cerca elétrica, do revólver do meu segurança, do meu cruel pitbull. E nem vem com esse papo de amor no arco-íris, de chance ao pivete, de liberdade religiosa, de raças abraçadas, que não tem. Meus atentos representantes nas casas legislativas em todo canto darão cabo dessa pouca vergonha. Meus caros, às favas os escrúpulos! Brasil, ame-o ou deixe-o!

Eu bem os conheço, meu caro, minha cara. O prazer em fazer sangrar alguém em praça pública até a morte, sem dó nem piedade, mesmo que o castigo aplicado ao desafeto volte-se contra si próprio lá na frente. A sensação de retrocesso generalizado em todas as áreas, resultante da total falta de conhecimento da história deste chão e deste povo e da consequente dificuldade de leitura da realidade. Claro, e muita manipulação oportunista desse estado de idiotia. Daí o achincalhe, o desrespeito, a desqualificação, a perseguição, o ódio. Numa palavra: o fundamentalismo cara-de-pau brazuca, a serviço, sabemos todos, de que e de quem. Uma nova doutrina jurídica que prende, julga e condena sem provas. Olavo de Carvalho, no andor, chora de rir.

Ocorrem-me estes lúgubres pensamentos enquanto me encontro no bar de fé, na mesa de sempre, na tarde de um sábado boêmio. À minha volta, dezenas de pessoas comentam em voz alta os últimos acontecimentos. Se os dissensos dão-se às pencas, os consensos não enchem um dedal. Discordâncias, desencontros, discussões, desavenças, agressões, os palavrões são vírgulas nas falas. Parece que esquecemos como cortejar a Dona Divergência, já que a ordem unida não é nem nunca foi o objetivo de qualquer debate. Súbito, alguém se levanta e, dizendo-se farto daquela conversa e para não sair no braço, manda passar a régua, que eu não sou fidumaégua para ouvir calado tanto besteirol. Já vi esse filme triste. O monstro, mais uma vez, está entre nós. 

Coluna de Romeu Duarte no Jornal O Povo no dia 29 de junho de 2015

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