Endereço: Av. Carapinima, 2425 - Benfica |Cep: 60015-290 - Fortaleza - CE |Tel: (85) 3283.5454 / 88973480
Email: iabce@iabce.org.br| Site oficial do IAB-CE | Página Facebook | Perfil Facebook | Twitter

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A fala do tempo

A Jocélio Leal

Alguns leitores fiéis deste espaço, outros nem tanto, andaram reclamando nas redes sociais do tom da crônica que cometi na segunda-feira passada. Dissera eu que o atual mau momento nacional, em que viceja a intolerância de todos os matizes, era o berço esplêndido onde dormia o ovo da serpente, o germe da arenga nacional cotidiana. Preocupava-me, como agora e sempre, aonde esse ódio poderia levar. “Sectário”, “agora sim, tomou partido”, “esse cara tem lado”, “mostrou a cara” foram algumas expressões que li a semana inteira, como se alguém, para ter conhecida sua ideologia política, tivesse que afirmá-la em slogans a cada minuto. As críticas deram razão a quem denuncia o contágio da esfera pública pela intransigência. Nos ouvidos, o eco da voz do Umberto Eco.

Entretanto, não quero aqui voltar a tratar de tão maçante tema. Interessa-me, isto sim, refletir sobre as relações da crônica, esse gênero literário tão brasileiro quanto sossegado, com o cotidiano. Teria ela que se manter sempre distante ou avessa a assuntos graves, os quais exigem posição e compromisso, constituindo-se eternamente em um exercício de escrita zen e introspectiva, como o milagre das folhas cadentes nos cabelos e olhos de Clarice Lispector? Ou fazer como Rubem Braga, que, às voltas com crises e discursos catastróficos, nunca perdia de vista as frutas da estação ou um bom pastel de palmito? Ensinava Machado que a trivialidade era um meio certo de começar uma crônica. Formas de falar da coisa ou do fato sem dizê-los, lições de finura.

Filha dileta de Chronos, deus grego do Tempo, a crônica, que antes se ocupava somente de relatos verídicos e nobres, passou a cuidar também, a partir do século XIX, dos costumes da vida mundana, achegando-se às pessoas e ganhando com isso contornos mais reais. Como o nosso conturbado e controverso dia-a-dia tem sido abordado por essa especial forma de registro? Devem os que se metem com esse ofício empregar amenas figuras de linguagem e narrativas em apólogo ou ousar um tratamento direto e desabusado do que se vê em casa e na rua? Para cada Stanislaw Ponte Preta há um Ferreira Gullar. Dizia Otto Lara Resende que quando a conjuntura convida ao pessimismo e à depressão, está na hora de ler. Ou reler, sobretudo.

Navegava nessas divagações numa parada de ônibus do Dionísio Torres, à espera do improvável coletivo, quando uma senhora, acompanhada do marido, estancou o carro na fila do sinal e bradou: “Sou sua leitora. Gosto do que você escreve. Vibrei com a sua última crônica”. “Muito grato, mas a senhora precisa ver o que disseram de mim na internet”, respondi-lhe. “Não dê atenção a quem não merece”, aconselhou-me, “os cães passam e a caravana ladra”. “Não seria o contrário?”, corrigi-lhe. “Ah, sei lá, que tem boca fala o que quer, quem com o ferro fere, tanto bate até que fura”. Sorrindo, vi que não adiantava estender o papo, o esposo ao lado já impaciente, e acenei um até mais ver. “Sabe o que mais?”, arrematou ela, “o senhor é muito mais bonito no jornal”. Aí o sinal abriu.

Fonte: O Povo

Nenhum comentário:

Postar um comentário