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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Coluna Romeu Duarte: Aos que desistem da vida

Até bem pouco tempo atrás, o ato era muito raro. Geralmente era visto como o resultado extremo de um distúrbio pessoal profundo, de uma anomalia estranha e perversa, de uma praga rogada por uma bruxa feia e má. Hoje, é cada vez mais corriqueiro, o que, mesmo assim, não nos deixa de abater e aterrorizar quando a triste notícia nos chega. E o pior é que a faixa etária dos que se vão por conta própria só diminui. Por receio de influenciar o meio social, os jornais não divulgam mais as ocorrências do que parece ser o ápice de um culto maligno. Suas causas estariam na compulsão ao consumo exagerado, na cobrança rigorosa dos pais, nas pressões exercidas pela sociedade, no vazio de rotas vividas a esmo, na cruel depressão. Que sei eu, psicólogo de boteco?

Gente que quer voar sem ter asas. Gente que quer nadar com os peixes sem ter guelras. Gente que quer dormir sem ter que acordar jamais. Gente que, no lugar de refresco de cajá, vai de cianureto. Gente que falha no afã de prolongar o prazer. Gente que sonha em ir desta para outra melhor e que acaba numa bem pior. Gente que sofre bullying, que amarga preconceito, que perde disputa e resolve encarar o escuro. Gente que deixa cartas, bilhetes, declarações, denúncias, acusações, reclamações, poemas, adeuses espalhados pelo chão. Seria esse penoso quadro um reflexo dos valores que atualmente cultuamos? Um sintoma do fracasso civilizatório desta comunidade do espetáculo, viciada em gadgets, hedonismo e internet? No céu, em bandos, urubus nos espreitam.

Que mundo maluco é esse que estamos construindo, tijolo por tijolo, todo santo dia, que faz nossas crianças irem do pediatra ao psiquiatra, do lanchinho ao remédio controlado, da travessura no parquinho à janela gradeada? O pensamento voa e me leva de volta à velha Base Aérea, quando, eu menino, saía de casa de manhã e voltava na boquinha da noite, cheirando a cassaco e trazendo comigo, além das muitas bordoadas dos rachas nas canelas, uma ruma de pitombas, azeitonas, siriguelas e goiabas. Ao contrário do samba do Ataulfo, era feliz e sabia. Retornando à realidade, em toda parte, vejo pessoas praticando o perigoso esporte de ser o que não se é e procurar ter sem ter como pagar. Como bem dizia Cecília, em que espelho perdeu-se a nossa face?

Para os que ficam, o desafio de seguir vivendo, de refazer a existência. Para sempre, a lembrança doída, o sentimento de culpa (que, às vezes, nem há), a saudade que bate na hora de arrumar o quarto daquele(a) que partiu de forma tão brusca, como reza o verso do Chico em seu canto-punhal. O que poderia ter sido e não foi, uma promessa não cumprida, uma chama que se extinguiu antes do incêndio, incompletudes. Lá fora, a manhã se arrepende do calor que nos impôs, presenteando-nos com uma leve chuva de caju. Oh, água bendita, além de garantir a safra do tão precioso fruto, lava nossos olhos lacrimosos pelos que não aguentaram a barra, leva nossa angústia para as profundezas do mar, livra-nos do mal, louva-nos em nossa humana condição, luta pela vida.

Coluna do Arquiteto e Urbanista, Romeu Duarte originalmente publicada no Jornal O POVO do dia 28/09/2015

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