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terça-feira, 24 de março de 2015

Minha casa, minha vida

Aos moradores do Residencial Iracema

Nestes tempos de farisaísmo atroz, dia desses fui convidado a participar de uma reunião de moradores de um condomínio na Praia de Iracema. No táxi, a caminho do tal encontro, já imaginava a razão do convite. Boquinha da noite, em lá chegando, onde há muito não ia, reparei nas belas árvores adultas que conheci meninas, nos jardins entre os blocos, nos gentis platôs contidos por paredes em tijolos crus. As luzes internas das moradas atravessavam as janelas de tramelas em madeira. Podia-se sentir o cheiro de café, sopa, dessas comidas que, servidas àquela hora, levam o nome de janta. O sax do Charlie Parker saía pela porta aberta. As atléticas escadas, nos portais das casas, pareciam saudar o sumido visitante. Um ar de velório no semblante do porteiro.

O amigo músico me recebe com seu abraço zoadento e galhofeiro. Mesmo assim, sinto o peso da apreensão e da tristeza em seu olhar. Sou por ele levado a um cantinho acolhedor, no final de uma alameda, onde já estavam umas trinta pessoas sentadas. Caladas e tensas, dão-me seus cumprimentos e me agradecem por ter vindo. Mosquitos voavam sobre aquelas cabeças atormentadas, resultado da chuva caída até bem pouco. O papo é reto: o dono do conjunto residencial, através de um emissário, mandou informar aos locatários que desocupassem seus abrigos até junho para que estes fossem demolidos de maneira a dar lugar a um grandioso empreendimento imobiliário. Uma criança dormia no colo da mãe. Um velho fazia contas dos tantos anos ali.

As coisas belas são as mais simples e vice-versa. Comecei assim, pela via da arquitetura, minha conversa com aquele aflito público. Obra datada do final da década de 1960, quando a profissão de arquiteto ainda engatinhava nesta Fortaleza, aquele grupo de residências térreas e aéreas era a expressão do Modernismo visto pelos olhos dos nossos pioneiros, também à época interessados nas construções populares. Seus valores histórico, arquitetônico, urbano-ambiental, simbólico e afetivo, mais que evidentes, destacavam sua presença amena em nossa capital cada vez mais ensimesmada e cinza. Uma lição de espaço, preciosa joia de um acervo cada vez mais dilapidado, um patrimônio a preservar. Qual efeito minhas palavras fariam naqueles ouvidos?

“Doutor, pelo que entendi, manter isso aqui seria um presente para a cidade, um ato de sensibilidade profunda. Podemos esperar isso de quem manda apenas um recado seco como uma lixa por um rude portador?”. “Doutor, tudo bem, mas e quanto a nós? Nessa sua proposta, como ficarão nossos aluguéis? Subirão ao céu feito foguetes?”. “Já morei em muitos lugares por aí, mas nunca num canto tão bom como este. Até meu cachorro ficou triste com a notícia. Pode alguém que já tem tudo querer ainda mais, doutor? Acelera, meteoro, acaba com esta fuleiragem chamada planeta Terra!”. “É fundamental conduzir o processo dentro da lei e contemplar as razões de cada parte. Como então proceder de forma a que ninguém saia prejudicado? Qual a saída, a solução?”.

Apesar do desalento e do cansaço que já abatiam alguns, eram patentes a confiança e a coragem nos rostos daquela gente bacana. Findo o compromisso e definidos os rumos a tomar, artistas, arquitetos, funcionários públicos, professores, pequenos comerciantes, aposentados, todos nos despedimos e fomos cuidar do resto das nossas vidas. Na volta para o lar, no carro de aluguel, a pergunta que não calava: “Ó, Loura desmazelada, a tua sina é eternamente perder o pouco que tens?”. Viajava nesta interrogação quando o taxista achou o Belchior no rádio: “Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”. Pedi a ele para mudar de estação. Minha cota de fortes emoções já havia sido atingida. De repente, um bolero, alguma esperança.

Fonte:http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte

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