Aos moradores do Residencial Iracema
Nestes tempos de
farisaísmo atroz, dia desses fui convidado a participar de uma reunião
de moradores de um condomínio na Praia de Iracema. No táxi, a caminho do
tal encontro, já imaginava a razão do convite. Boquinha da noite, em lá
chegando, onde há muito não ia, reparei nas belas árvores adultas que
conheci meninas, nos jardins entre os blocos, nos gentis platôs contidos
por paredes em tijolos crus. As luzes internas das moradas atravessavam
as janelas de tramelas em madeira. Podia-se sentir o cheiro de café,
sopa, dessas comidas que, servidas àquela hora, levam o nome de janta. O
sax do Charlie Parker saía pela porta aberta. As atléticas escadas, nos
portais das casas, pareciam saudar o sumido visitante. Um ar de velório
no semblante do porteiro.
O amigo músico me recebe com seu
abraço zoadento e galhofeiro. Mesmo assim, sinto o peso da apreensão e
da tristeza em seu olhar. Sou por ele levado a um cantinho acolhedor, no
final de uma alameda, onde já estavam umas trinta pessoas sentadas.
Caladas e tensas, dão-me seus cumprimentos e me agradecem por ter vindo.
Mosquitos voavam sobre aquelas cabeças atormentadas, resultado da chuva
caída até bem pouco. O papo é reto: o dono do conjunto residencial,
através de um emissário, mandou informar aos locatários que desocupassem
seus abrigos até junho para que estes fossem demolidos de maneira a dar
lugar a um grandioso empreendimento imobiliário. Uma criança dormia no
colo da mãe. Um velho fazia contas dos tantos anos ali.
As
coisas belas são as mais simples e vice-versa. Comecei assim, pela via
da arquitetura, minha conversa com aquele aflito público. Obra datada do
final da década de 1960, quando a profissão de arquiteto ainda
engatinhava nesta Fortaleza, aquele grupo de residências térreas e
aéreas era a expressão do Modernismo visto pelos olhos dos nossos
pioneiros, também à época interessados nas construções populares. Seus
valores histórico, arquitetônico, urbano-ambiental, simbólico e afetivo,
mais que evidentes, destacavam sua presença amena em nossa capital cada
vez mais ensimesmada e cinza. Uma lição de espaço, preciosa joia de um
acervo cada vez mais dilapidado, um patrimônio a preservar. Qual efeito
minhas palavras fariam naqueles ouvidos?
“Doutor, pelo que
entendi, manter isso aqui seria um presente para a cidade, um ato de
sensibilidade profunda. Podemos esperar isso de quem manda apenas um
recado seco como uma lixa por um rude portador?”. “Doutor, tudo bem, mas
e quanto a nós? Nessa sua proposta, como ficarão nossos aluguéis?
Subirão ao céu feito foguetes?”. “Já morei em muitos lugares por aí, mas
nunca num canto tão bom como este. Até meu cachorro ficou triste com a
notícia. Pode alguém que já tem tudo querer ainda mais, doutor? Acelera,
meteoro, acaba com esta fuleiragem chamada planeta Terra!”. “É
fundamental conduzir o processo dentro da lei e contemplar as razões de
cada parte. Como então proceder de forma a que ninguém saia prejudicado?
Qual a saída, a solução?”.
Apesar do desalento e do cansaço
que já abatiam alguns, eram patentes a confiança e a coragem nos rostos
daquela gente bacana. Findo o compromisso e definidos os rumos a tomar,
artistas, arquitetos, funcionários públicos, professores, pequenos
comerciantes, aposentados, todos nos despedimos e fomos cuidar do resto
das nossas vidas. Na volta para o lar, no carro de aluguel, a pergunta
que não calava: “Ó, Loura desmazelada, a tua sina é eternamente perder o
pouco que tens?”. Viajava nesta interrogação quando o taxista achou o
Belchior no rádio: “Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo
sempre vem”. Pedi a ele para mudar de estação. Minha cota de fortes
emoções já havia sido atingida. De repente, um bolero, alguma esperança.
Fonte:http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte
Nenhum comentário:
Postar um comentário