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quinta-feira, 9 de abril de 2015

Amargo pão de coco


A Paulo Montenegro

Aquele homem de meia idade era só sofrimento naquela pequena cidade do interior do Ceará. Desde garoto, uma vida inteira dedicada à religião católica, tendo a solidão por companheira. E um pouco de álcool também, que ninguém é de ferro para aguentar sozinho dessa parceira as maldades. Lotado agora nessa paróquia, onde o cão perdeu as botas, procurando a cada instante a palavra certa para abrandar um coração doído, estancar uma sangria desatada, amansar um fígado repleto de ódio, segurar um punho crispado pela injustiça. “Ah, Senhor, quem acariciará a face deste Teu servo, cansado de tanto tentar mitigar as dores daqueles que fizeste à Tua semelhança?”, indagava do Altíssimo, nas tantas vigílias solitárias, os galos tecendo a manhã.

Sob a surrada batina, seu corpo estremecia ao ritmo de uma paixão que mal conseguia esconder. A vera razão do seu penar era aquela senhorinha roliça, de liso e comprido cabelo negro, casada de novo com o filho do dono do cartório. Era por ela que se agoniava, que errava o salmo, que perdia o rumo do sermão, que o fazia pensar em usar o chicote de silício para expulsar o capeta dos sambados couros. E quando ela vinha, contrita e decotada, à mesa da comunhão? Faltava-lhe o ar, o sangue fervia-lhe por dentro das veias, tudo se lhe latejava. “É hoje que eu me acabo”, lastimava-se, ao vê-la voltar ao seu lugar, deixando-lhe um sorriso e seu perfume como esmola. Tomara uma decisão: fosse loucura ou não, teria um encontro com ela, lá no motel da curva.

Por não confiar no sacristão, caviloso e mercenário como ele só, mandara o recado pelo neto da costureira, um rapaz que cantava no coro da igreja. Na volta, o emissário não trouxe bilhete nem lhe disse nada, o que lhe afligiu ainda mais. Como teria ela recebido o convite para uma tórrida tarde de amor na suíte master do Frenesi em pleno Sábado de Aleluia? Tivera ânsia de vômito ante tal nojento ato, gabara-se no espelho de sua sedutora condição feminina ou simplesmente calara? Esse ensurdecedor silêncio lhe torturava como um suplício chinês. A Semana Santa se avizinhando, mil afazeres da fé solicitando sua presença a todo momento, os fiéis no seu encalço e ele com a cabeça naquele santo pecado. “Ó, Senhor, por que me reservaste tal castigo?”, uivava.

Chegara, então, o Tríduo Pascal. Na quinta-feira, celebrou, amuado, o Ofício dos Santos Óleos, abençoando os noviços e os enfermos e consagrando o Crisma. Mais tarde, rezou a Missa de Lava-pés, alegre como pinto no lixo: bem sentada no banco da frente, lá estava a dona da sua vontade, os pezinhos descalços aguardando sua benção, um riso de Mona Lisa nos carnudos lábios. Nenhum sinal, quer de aprovação ou rejeição. Demorou-se nela mais que nos outros pecadores, cobrindo de beijos aqueles dedinhos cheirosos, causando espécie aos presentes. Na Sexta de Trevas, presidiu a Celebração da Cruz, lendo, emocionado, o evangelho de João, e, sob Vésper, conduziu a Procissão do Senhor Morto. No sábado, o Círio aceso apagou-se com a réplica final: não.

Acordou bêbado no Domingo da Ressurreição. Às quedas, já paramentado, disse ao templo cheio: “Piano, piano, si va lontano. Petit a petit, l’oiseaux fait son nid”. “Esse padre é o tal, fala até inglês”, curtiu um desdentado. “Deus é grande e o mundo é largo”, continuou, sob as palmas da assembleia. “Eu tenho é sofrido, mas O Lá de Cima está vendo”, lamentou-se, para tristeza dos que o ouviam. “Nada mais nos resta, a morte se aproxima”, seu poema desesperançado soando absurdo em plena comemoração do retorno à vida Daquele que se imolou por nós. “Morreremos logo após”, anunciou, grave, gerando uma balbúrdia dos diabos. Retirado do altar na marra pelos auxiliares do culto, ainda teve forças para dizer, cínico: “À meia-noite sai um cafezinho...”.

Fonte:Colunas opovo | Romeu Duarte 

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