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segunda-feira, 11 de maio de 2015

O indestrutível

A Francisco Farias


Mesmo tendo um grande número de amigos médicos (talvez mais do que arquitetos), corro léguas de hospital. Não há por certo, neste vasto mundo velho sem porteira, alguém que tenha mais medo dos procedimentos de saúde do que eu. Do mais simples e indolor ao mais invasivo e lancinante, que me dá vertigem só de pronunciar o nome. Sabe aquele sujeito que muda o canal da televisão quando aparece alguém tomando injeção? Pois, meus caros, como diz o Rei, esse cara sou eu. Meus camaradas esculápios costumam ouvir em silêncio minhas lamúrias, certamente dizendo aos seus botões: “Que cabra mais frouxo!”. Digo-lhes que me inspiro nas palavras e atos de um ex-colega deles e ex-ocupante deste nicho, Airton Monte, que não se dava com Asclépio.

Tive uma infância e um começo de adolescência marcados por doenças variadas, que vez ou outra me subtraíam da pelada na ponta de areia, do jogo de bila no quintal, do carrinho de rolimã na calçada. Criado sem poder beber do bom leite materno, fui cevado à base do insosso leite de soja, crescendo sem os necessários e heroicos anticorpos. Daí para que eu me transformasse num playground de alergias foi um pulo. Urticárias, coceiras, bolhas, feridas, fui me transformando num parente do Coisa, devoto de São Francisco do Canindé. Como me lembro dos sofridos tratamentos dermatológicos: alérgico a contatos, materiais e alimentos mil, a agulha procurando, sôfrega, a veia, as costas abertas em chagas, pomadas, drogas, curativos, coitadinho do garoto feridento.

"Sabe aquele sujeito que muda o canal da televisão quando aparece alguém tomando injeção? Pois, meus caros, como diz o Rei, esse cara sou eu"

Confesso que essa prolongada estada no inferno mexeu com o meu emocional para todo o sempre. Escapei dessa câmara de horrores pela porta da frente, enfrentando o monstro no terreno dele: um fumegante tacacá na Barraca do Índio, cerveja e cachaça a rodo no Estoril, sandubas gordurosos na Volta da Jurema, eu e o meu chapa, parceiro musical e futuro doutor Assis Ximenes destruindo juventude e ganhando sabedoria na noite veloz da Loura nos anos de 1970. Embora tendo construído a defesa do organismo a tapa e ficado vacinado contra as intempéries que afligem o corpo, o juízo foi tomado por uma covardia digna de nota: não frequento dentista, não faço exame de jeito algum, check-up, então, nem pensar. Quem procura, acha, e com o dedo teso, então...

E os vexames? Aprovado no concurso para professor da UFC, fui obrigado a fazer uma vistoria geral nas condições corporais. No laboratório de análises clínicas, amparado pela mãe e pela mulher, era ver um condenado à garra. Chamado ao posto de coleta, segui como quem se dá ao carrasco. Entrou comigo, com a mesma pena, um homenzarrão de rosto desconfiado. A enfermeira pegou o meu braço e passou éter na junta. O cheiro do óxido, subindo pelo nariz, fez descer a cortina do Theatro José de Alencar. Vendo que desmaiava, a moça feriu-me os brios: “Não é homem, não?”. Que vergonha seria dar uma agonia na frente daquele jagunço. Súbito, um gemido e o bruto no chão. “Ora”, pensei, “se ele pode, eu não?”. Ao tornar, mamãe: “Deu à luz?”.

"Criado sem poder beber do bom leite materno, fui cevado à base do insosso leite de soja, crescendo sem os necessários e heroicos anticorpos. Daí para que eu me transformasse num playground de alergias foi um pulo"

Para contornar o problema e fazer bonito nas rodas familiares e mundanas, criei uma fantasia de que sou feito de material de primeira, arcabouço todo original, pegando na chave, indestrutível, portanto isento de cuidados medicinais. Numa palavra: um Wolverine moreno de meia idade, concebido na Base Aérea e torcedor do Ceará. A vaia come de esmola, sem dó nem piedade: “medroso”, “mofino”, “molenga” são alguns dos muitos adjetivos com que a canalha me contempla e que posso publicar aqui. De fato, a medicina, para me ter como seu paciente, terá que adocicar demasiadamente seus métodos. “Quem sabe o senhor cedendo um pouco ela não muda?”, pergunta minha filha, preocupada comigo. Enquanto rola a contenda, o tempo se esvai...


Fonte: Opovo  |  Coluna Romeu Duarte

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