O que o lixo nos diz
Cato lixo para viver. Ou melhor, para sobreviver. Todo dia, eu e meu carrinho (um chassis de geladeira adaptado) estamos por aí atrás de coisa seca que não presta mais. Plástico, madeira, metal, vidro, papel, essas coisas que o povo descarta, rebola no mato, a todo instante. O que é inútil para os outros é útil para mim. É daí que tiro meu sustento. Alguém me disse uma vez que lixo é aquilo que se encontra fora do seu lugar. Gente, como eu e meus colegas, que luta no lixão imundo por um pedaço de lata ou papelão para vender, seria então uma porcaria humana, ralé? Dia desses encontrei um bebê vivo num camburão. “Lixo orgânico é o caminhão da prefeitura que leva”, falou um gente-fina atrás de mim. O que as pessoas jogam fora diz muito delas. O sobejo fala.
Estive ontem trabalhando no Meireles. Como aquele pessoal estraga comida, macho! É pizza pela metade, sanduíche com uma dentada apenas, bandeja de iogurte. Móvel, então, é o pau que rola. Sofá, cadeira, mesinha, dá para montar uma loja sortida e só com mercadoria nova. Lá, a ordem parece ser comprar e se livrar dos teréns o mais rápido possível. Chato é ter que aguentar a cara de nojo e medo deles olhando para nós. Naquele bairro, a casa é a casa e a rua é a rua, não se misturam de jeito nenhum. Nem esquento. Faço o meu serviço e não estou nem aí. Há duas semanas, catei uma ruma de panela amassada nas calçadas. Me disseram que foi por causa de um protesto que os moradores fizeram contra o governo. Fizeram como o gato: comendo e miando. Eu, hein?
Lugar onde a classe média mora é onde tem mais entulho. É saco para todo lado, do pequeno ao grande, atulhando o passeio e a via, enchendo os bueiros. Mal a coleta é feita, a sujeira toma de conta outra vez. Talvez por prazer, quebram os objetos que não querem mais e os jogam de qualquer jeito no chão. A ideia de reciclar, reutilizar, para essa negradinha, não existe. Quem sabe não queira ver um miserável com um sorriso no rosto por ter achado algo aproveitável no meio do monturo? Eita, magote de cabra ruim. Duvida? É só passar no Joaquim Távora, no São João do Tauape, no Bairro de Fátima. Anteontem dei uma conferida no José Bonifácio e vi também umas panelas amassadas por lá. Pense nuns bestas. Só querem ser as pregas. Nunca serão.
Aqui para nós, o interessante agora é fazer a cata nas áreas pobres da cidade. Antes, quase não havia o que levar. Ora, se tinha uma turma, naquela época, para quem os latões eram um self-service...De uns tempos para cá, o negócio mudou e muito. Já se pode ver material de boa qualidade no que é descartado, sinal de que o canelau teve o padrão de vida melhorado. Panela amassada aqui nem pensar. Só encontrei umas acabadas pelo uso, prova de que passaram a ter bem mais alimento para botar no fogo. Eu mesmo experimentei isso na pele, quer dizer, no bucho. A mulher e os comedorzinhos de rapadura lá de casa que o digam. Mas é preciso ir para a frente, há mais o que conquistar. O diabo aqui é a droga, que quer o celular, a bicicleta, a moto, fatal.
Quer saber? Fortaleza é uma lixeira a céu aberto, resultado da má educação dos seus moradores e da fiscalização peba do Município. Leio neste retalho de jornal que, em dois dias, a PMF arrecadou R$ 72 mil de multas aplicadas nos sujismundos. Nas águas da Lagoa de Porangabuçu, do Riacho Maceió e do Lagamar boiam restos dos hospitais, das moradias e da construção civil. Fico na minha, só observando e juntando o que me interessa. A coroa que garante o meu café-da-manhã diário, professora da universidade, gosta das minhas tiradas e diz que o que faço é uma tal de sociologia urbana. Sei nem o que é isso. Só sei que andar por aí, de olho aberto e mente atenta, ensina muita lição de valor. A dona lá fala que eu sou um pensador. Sou apenas um sobrevivente.
Fonte: Coluna OPovo / ROMEU DUARTE
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