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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O velho, o tempo e a cidade


A Flávio Torres

De repente, lampejo que por vezes acontece para nos situar no mundo, descobriu-se numa profunda solidão. Sentado no sofá da sala do apartamento vazio, mirava sem planos o mar banhado de sol. Mais de oito décadas nos costados. A mulher já falecida, os filhos sempre sumidos, os poucos netos. “Quem quer saber de velho?”, perguntava-se, num sorriso triste. Nas paredes da morada, a memória da vida inteira enquadrada. “Isso aí sim é um cemitério vertical, esse pessoal todo já pegou o beco”, brincava com a sua sorte de sobrevivente. Morava só por opção. Não tolerava a ideia de ter uma cuidadora (que ele chamava de “babá de ancião”) no seu pé. Banhava-se, vestia-se, cozinhava, arrumava seu cantinho, tudo sozinho: “o tempo com mulher já era”.
 
Acostumou-se a anotar as tarefas cotidianas em bilhetes amarelados que espalhava pelo lar. “É o diabo do alemão chegando. Para me pegar, tem é Zé”, desafiando, em silêncio, a moléstia implacável. Há alguns dias, percebera que só usava os verbos no passado. A garçonete do bar que frequentava foi quem lhe puxou as enormes orelhas: “lá vem o vovô do ‘já teve’, ‘já foi’ e ‘já houve’”. Respondeu-lhe com uma banana e uma cara feia, esta logo desfeita pela bitoca que a moça lhe deu na bochecha. Realmente, não achava graça no presente. Suas referências do existir estavam todas nos tempos idos. O futuro causava-lhe medo e desamparo. Em suas prateleiras, livros, discos e filmes celebravam épocas de ouro. Sentia-se tranquilo no reino do que ficou para trás.
 
Passou a espiar a cidade, que não estava nem aí para ele. Todos aqueles prédios haviam sido construídos sobre a Fortaleza que conhecera
 
Para matar o tédio, pensou em escrever uma carta para alguém. Como, se não havia papel pautado nem caneta-tinteiro, como antigamente? Para quem, se seus rebentos não valiam o esforço de uma missiva e seus amigos e parentes estavam todos mortos e enterrados? Para que, se hoje em dia ninguém mais lê carta? Por que, se não tinha nada a dizer? Desistiu do intento e foi para a varanda, debruçando-se no parapeito. Passou a espiar a cidade, que não estava nem aí para ele. Todos aqueles prédios haviam sido construídos sobre a Fortaleza que conhecera, sepultando as suas muitas lembranças sob um montão de tijolo e concreto. Pessoas, edifícios, lugares, objetos, costumes, árvores, nada daquilo havia mais. “Inflexível, o correr dos ponteiros do relógio”.
 
Na sua paranóia de homem antigo, bicho condenado à extinção, pensou: “Não é só a infalível passagem das horas que me espreita. Essa cidade nova, que destruiu a que eu tão bem sabia e que cabia na palma da minha mão, quer também me devorar”. Foi ao quarto e pegou o revólver. “Acabo com eles, antes que acabem comigo”, disse, estourando com um tiro o cuco de estimação sobre a cristaleira. Em seguida, com o cão nos couros, passou a atirar nas construções à sua volta. Paredes perfuradas, vidraças estilhaçadas, esquadrias quebradas, gente ferida foi o resultado do seu exercício de franco atirador de bala muita e juízo pouco. Mais tarde, algemado na delegacia e quase vítima de linchamento, grunhiu: “Não me arrependo. Foi em legítima defesa. Ainda vai?”.

Coluna do Arquiteto e Urbanista Romeu Duarte para o jornal O Povo em 03/08/2015.

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